“O racismo existe mesmo?”: do “alto” do seu Observatório, a branquitude ensina

Como se não bastasse o absurdo de termos um observatório branco para combater uma criação branca, agora também temos o absurdo de uma “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia” coordenada integralmente por pessoas brancas, e, até ver, ministrada sem uma única pessoa não-branca. A ausência é notória, e isso ressalta não apenas do mosaico de imagens que acompanha este texto. Para quem pensou essa pós-graduação, as manifestações de racismo não atravessam toda a sociedade. Só “aparentemente” é que as encontramos “em todo o lado – no local de trabalho, nas ruas, nas interacções quotidianas”. Não estranha, por isso, que a sessão 6 da formação arranque com uma pergunta inqualificável: “Mas o racismo existe mesmo?”.

Corpo docente da “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia", lançada pelo Observatório

Recuemos até 2021. Em Março desse ano, a CIP - Confederação Empresarial de Portugal promovia a conferência "As Mulheres e o Emprego: Um Tema do Homem", na qual propunha debater, “entre líderes masculinos”, a fraca presença feminina em posições de chefia. “Vamos discutir o que trava a ascensão de mais mulheres a cargos de gestão", lia-se na descrição do evento, rapidamente contestado pela total ausência de oradoras.

A CIP dispunha-se a conversar sobre exclusão feminina, e demonstrou, antes mesmo de iniciar a discussão, como as lideranças masculinas urdem para que assim seja. Se dúvidas houvesse, ficou evidente que as práticas machistas e misóginas – e não a falta de candidatas competentes – explicam o excesso de testosterona em lugares de poder e influência.

Dessa constatação à contestação, bastaram uns posts de indignação nas redes sociais para que a CIP recuasse: não só alterou o nome do encontro para "Desta vez: Emprego um Tema de Homens e Mulheres", como decidiu incluir palestrantes femininas – três para seis homens.

Por mais performática que a mudança tenha sido, ela aconteceu, a partir do reconhecimento – que deveria ser óbvio – de que uma discussão sobre a realidade vivida por mulheres não pode descartar a sua presença. Fazê-lo equivale a passar-lhes um atestado de incapacidade, reduzi-las à condição de seres não pensantes e sem autodeterminação.

Fácil de perceber, certo?

Onde reside, então, a dificuldade de entender que um Observatório do Racismo e Xenofobia não pode ser liderado por pessoas brancas e, pior do que isso, só por pessoas brancas, e sem especialização na área?

Como compreender que as pessoas que vivem na pele o racismo e a xenofobia estejam completamente afastadas dessa discussão e intervenção?

Já o dizemos há mais de um ano, mas continuamos a não ser ouvidos, porque as práticas racistas são aceites pela maioria da população branca.

Aliás, como se não bastasse o absurdo de termos um observatório branco para combater uma criação branca, agora também temos o absurdo de uma “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia” coordenada integralmente por pessoas brancas, e, até ver, ministrada sem uma única pessoa não-branca (algumas sessões permanecem sem professor responsável).

A ausência é notória, e isso ressalta não apenas do mosaico de imagens que acompanha este texto.  

Para quem pensou essa pós-graduação, as manifestações de racismo não atravessam toda a sociedade. Só “aparentemente” é que as encontramos “em todo o lado – no local de trabalho, nas ruas, nas interacções quotidianas”.

Não estranha, por isso, que a sessão 6 da formação arranque com uma pergunta inqualificável: “Mas o racismo existe mesmo?”.

A mentira que inventou o racismo

Do alto do seu observatório, a branquitude duvida, mas promete ensinar-nos sobre racismo e xenofobia, transaccionando, assim, mais uma actualização sobre a “mentira que inventou o racismo”, tema de uma TED Talk apresentada em 2020 pelo jornalista e documentarista americano John Biewen.

Escrevi sobre ela no manual KINDER “Desconstrução de estereótipos desde a infância”, onde assinei o capítulo sobre “Educação Antirracista e Antixenófoba: a importância do reconhecimento e da valorização das diferenças”.

Partilho convosco parte dessa reflexão, construída a partir das palavras de Biewen.

“Como é que isto aconteceu? Como é que chegámos a isto?”, questionava o jornalista nessa intervenção, partilhando o resultado de anos de inquietações: Quem criou o conceito de raça? Quando?

Sem qualquer expectativa de obter a identificação de uma pessoa ou uma data específica, Biewen conta, nessa palestra, como a resposta do historiador Ibram Kendi o surpreendeu.

“Disse-me que, na sua pesquisa extensiva, encontrara o que considerava ser a primeira articulação de ideias racistas. E designou o culpado: o nome dele era Gomes de Zurara, um homem português”.

Foi a partir das suas crónicas, produzidas por volta de 1450, que os povos de África começaram a ser retratados como “inferiores e animalescos”, ainda que detivessem algumas das culturas mais sofisticadas do mundo.

“Porque é que esse homem afirmaria isto?”, pergunta Biewen, aconselhando a audiência a seguir o rasto do dinheiro. “Zurara tinha sido contratado para escrever para o Rei e, apenas uns anos antes, os comerciantes de escravos vinculados à Coroa portuguesa tinham sido os pioneiros do tráfico de escravos no Atlântico. (…) Portanto, trata-se de dinheiro e poder. De súbito, era bastante útil que existisse uma história sobre a inferioridade das gentes africanas que justificasse a sua comercialização.”

“Mas o racismo existe mesmo?”, perguntam eles. Sabemos.

Paula Cardoso

Jornalista, Fundadora da rede Afrolink e Autora da série de livros infantis Força Africana.

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