17 acções para Portugal “reparar o irreparável”: uma História de crimes

Elaborada no âmbito da “Oficina de Reparações”, inserida no IV Encontro de Cultura Visual, realizado no Teatro Mala Voadora, no Porto, a Declaração do Porto propõe-se “alargar e aprofundar o debate sobre reparações históricas em Portugal”. O documento, que o Afrolink subscreve e publica, inclui um repto à acção governamental, traduzido em 17 pontos. A começar pelo “reconhecimento do COLONIALISMO, da ESCRAVATURA, dos MASSACRES COLONIAIS, do TRABALHO FORÇADO, da negligência das FOMES, das PRÁTICAS GENOCIDAS, ETNOCIDAS, SEGREGACIONISTAS e EPISTEMICIDAS enquanto crimes e, consequentemente, a formalização de pedidos de desculpas”.

Declaração do Porto – Reparar o Irreparável, de 7 de Julho de 2023

Foto: Memorial à Escravatura Thomas Alexandre Dumas, França

A escravatura, a colonização, o genocídio e o etnocídio de populações nativas em África e na Abya Yala, a racialização e a exploração de povos e corpos-territórios humanos e não humanos, constituem os maiores crimes cometidos contra as nossas humanidades. Desde o século XV, milhões de pessoas foram sequestradas, escravizadas, violadas e submetidas às mais variadas formas de desumanização, em função de um projeto colonialista, forjado numa ideia perversa de civilização.

Portugal foi pioneiro nesse bárbaro empreendimento de acumulação de capital baseado em práticas genocidas e escravocratas, tendo deslocado quase 6 milhões de pessoas dos 12,500 milhões de registos. Foi o último país da Europa a abolir a escravatura, em 1869, mantendo a prática do trabalho forçado até aos anos 1960 do século XX. Foi ainda a última potência colonial a reconhecer as independências dos territórios ocupados. Se, de facto, o 25 de Abril fechou as portas ao fascismo salazarista, várias janelas ficaram escancaradas e, através delas, os saudosistas vão reavivando a memória colonial e (re)inscrevendo-a no espaço público. Portugal não se descolonizou. Apesar dos quase 50 anos de democracia, e de muita contestação aos crimes do passado, o discurso de glorificação do passado mantém-se ainda o oficial e dominante. É indispensável reconhecer a dívida histórica para com pessoas negras, ciganas e indígenas, para potenciar um debate, efetivo e honesto, sobre políticas de reparação.

Nas definições apontadas no dicionário da palavra reparar, encontramos: retocar, consertar, restaurar, indemnizar, restabelecer e compensar. Porque a colonialidade não é uma mera condição, mas um estado de espírito e de coisas, acreditamos que nenhuma dessas palavras, ou qualquer outra da gramática colonial da língua portuguesa, traduz a dimensão ou sequer sugere o que designamos por reparação no que toca a tais acontecimentos irreparáveis para a vida e a dignidade desses povos. Ainda assim, para além de qualquer conceptualização, consideramos urgente as políticas e práticas efetivas de reparação nas suas várias dimensões. Nesse sentido, e na continuidade das reivindicações históricas das organizações e movimentos de (e em) luta, exigimos ao Estado Português:

1. Reconhecimento do COLONIALISMO, da ESCRAVATURA, dos MASSACRES COLONIAIS, do TRABALHO FORÇADO, da negligência das FOMES, das PRÁTICAS GENOCIDAS, ETNOCIDAS, SEGREGACIONISTAS e EPISTEMICIDAS enquanto crimes e, consequentemente, a formalização de pedidos de desculpas.

2. Perdão de todas as dívidas (odiosas, injustas, ilegais e/ou imorais) contraídas pelos países ocupados e colonizados por Portugal e o pagamento de indemnizações às pessoas lesadas pelo colonialismo por exemplo, entre outros, aos ex-contratados de São Tomé.

3. Restituição às comunidades colonizadas e sem prejuízo de condições financeiras ou de outra natureza, dos objetos, arquivos, artefactos e corpos humanos presentes nas instituições de cariz museológico.

4. Implementação de políticas públicas afirmativas, transversais, de combate à desigualdade racial através da mobilização de recursos financeiros consequentes, via Orçamento do Estado, em áreas-chave para a equidade social – educação, emprego, habitação, saúde, justiça, cultura – envolvendo diretamente as pessoas racializadas e as suas organizações na definição, elaboração e na execução de políticas públicas. Para tal, consideramos fundamental a recolha de dados étnico-raciais.

5. Atribuição da nacionalidade portuguesa a todas as pessoas que nasceram em Portugal.

6. A desburocratização dos processos de pedido de vistos, livre circulação e garantia dos direitos de cidadania para os emigrantes dos países colonizados por Portugal. Isenção de propinas para alunos provenientes desses países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Timor.

7. A criminalização do racismo e a instituição de uma Carta de Princípios Anti-Racistas, em todas as áreas da função pública e no sector privado, de prestação de bens e serviços, com formação em literacia étnico-racial nomeadamente no âmbito da educação básica e no espaço laboral.

8. Abolição das prisões e desinvestimento no policiamento racista e repressivo.

9. Assunção do papel dos Movimentos de Libertação africanos no 25 de Abril de 1974.

10. Reconhecimento do cabo-verdiano enquanto língua nacional, à semelhança do mirandês, e difusão da diversidade linguística que habita o país, através da promoção de políticas públicas do seu ensino.

11. Desmantelamento de estátuas e de monumentos racistas, e contextualização das sequelas do passado colonial. Desenvolvimento de políticas públicas de (sobre e para) a memória que destituam o imaginário colonial e, simultaneamente, identifiquem e inscrevam as pessoas e narrativas não brancas ausentes do imaginário coletivo.

12. Construção do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, um dos projetos mais votados no Orçamento Participativo de Lisboa de 2017, consecutivamente adiado. Abertura de uma discussão na Assembleia da República sobre a memorialização das vítimas da escravatura e do colonialismo como projeto abrangente a nível nacional.

13. Total transparência no que diz respeito aos restos mortais das 158 pessoas encontradas no Valle da Gafaria, hoje a cargo de uma empresa privada em Coimbra. Urge a sua transladação e a memorialização do local como o mais antigo cemitério de pessoas escravizadas no mundo, onde foram encontradas, em diálogo com o atual Núcleo Museológico Rota da Escravatura, em Lagos.

14. Reconhecimento e inscrição da figura de Amílcar Cabral no espaço público como um dos precursores da democracia em Portugal.

15. Descolonização do hino e de todos os símbolos nacionais que evoquem a exaltação do passado colonial.

16. Implementação da data de 10 de Junho como o dia de Alcindo Monteiro e de todas as vítimas do racismo e da xenofobia em Portugal.

17. Políticas de reparação de biomas e de paisagens, apoiando as comunidades dilaceradas pela monocultura e pelo extrativismo, em Portugal e nos países que foram colonizados por Portugal.

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Entendemos que reparar tem necessariamente de provocar uma rutura radical com o sistema capitalista cujo brutalismo e política de morte assombra ainda os futuros dos nossos povos.

Acreditamos que Portugal, tal como toda a Europa, é estruturalmente racista e colonialista. Sabemos que os crimes cometidos pelo colonialismo são irreparáveis e indefensáveis. Entendemos, entretanto, que a reparação é um imperativo, o único caminho possível para um sentimento de justiça com nossos ancestrais e para a construção de presentes e futuros mais dignos e mais justos.

Os participantes da Oficina de Reparações (entre 25 de junho e 6 de julho de 2023)
Ana Cristina Pereira/Kitty Furtado, Aline Frazão, Apolo de Carvalho, Gessica Correia Borges, Inês Beleza Barreiros, Marta Lança, Pirá/Ellen Lima Wassu, Sara Henriques, Tomé Silva