“Pretos a jogar à bola? Antes comer merda” – o racismo segue em forma

Se acha que a frase utilizada no título é excessiva, tente imaginar o seu impacto em miúdos de 10 anos. Agora acrescente-lhe um chorrilho de outros insultos, como “Filhos do Diabo”, agravados por incitações à violência: “Batam neles que eles não prestam”. Eles, sublinhe-se, são pessoas, crianças que integram uma das equipas de futebol do clube Associação Desportiva da Amadora – ADAMD. Eles, reforce-se, estavam em campo para fazer algo que os diverte: jogar à bola. Do outro lado encontraram uma bancada pejada de ódio racial, arremessado pelos pais dos seus adversários. Perderam em campo, mas venceram e continuarão a vencer fora dele, porque transportam consigo amor e humanidade, e estão rodeados por pessoas que os elevam. Como Telmo da Luz, treinador-adjunto do escalão de 2012 e dirigente do clube amadorense onde estão a ser formados. Num post publicado nas redes sociais, Telmo relata o racismo que os “seus” miúdos viveram no último sábado, 1, num recinto desportivo, admite que ponderou abandonar a partida, e partilha as instruções que deu aos seus jogadores após o apito final. “Peço que caminhem de mãos dadas em direcção aos pais dos adversários. E peço que, chegando em frente deles, soltem as mãos e os aplaudam. Que os façam sentir que são grandes miúdos. E que, no meio de alguma revolta, vão lá fazer o que o mister pediu. Onze miúdos de mãos dadas. Onze miúdos a aplaudirem quem os agrediu num jogo que não vale nada. E novamente aqueles pais mostram que não nos merecem. Começam a vaiar os miúdos. Começam a chamar nomes. Começam a chamá-los de pretos. Começam, não. Continuam. E os meus heróis aplaudindo. Olho nos olhos. Sem medo. E dão as costas. E aplaudem os nossos pais. Que não eram muitos, mas que sentiram essa dor. Sentiram a bravura desses miúdos”. Nós também sentimos. E reproduzimos na íntegra o post que o Telmo escreveu, e que deveria ser de leitura obrigatória.

por Telmo da Luz* 

Era apenas um belo dia de Outono: 01 de Outubro de 2022.

Acordo às 7 horas da manhã e, de seguida, acordo o meu filho:

– “Bora acordar filho. Temos jogo hoje e a concentração é às 7h30.”

– “Ok, pai. Dormi lindamente, e acho que vou jogar bem hoje”.

Assim começou o nosso dia. Chegámos à concentração, e tenho mais 10 a 12 miúdos, cheios de sono mas todos felizes. Hoje é dia de futebol. Hoje é dia de divertimento.

Trinta e cinco minutos de carro e duas portagens depois chegámos ao nosso destino. Está sol. Dá para ver o mar. Que dia magnífico e belo para jogar a bola.

Entrámos no clube adversário. Doze miúdos mais treinadores negros e recebemos aquele olhar. Aquele olhar que todos nós, negros, conhecemos. Aquele olhar que posso explicar, mas apenas os meus amigos negros que vivem na Europa conhecem.

E o meu primeiro pensamento foi: “Povo pouco amistoso”. Será que deveria ter adivinhado o que vinha aí? Será que deveria ter escutado a minha consciência e ter ido logo embora? Hum…Não sei, e não consigo responder a esta pergunta.

Mandámos os miúdos aquecerem para começarmos o jogo. As bancadas começam a encher-se com pais dos miúdos da outra equipa, e eu, ainda inocente, a pensar na felicidade desses miúdos com tantos e tantos pais a irem assistir ao jogo deles às 9 da manhã. E também a pensar nos pais dos meus que, por várias vicissitudes da vida, estavam nesse mesmo horário a trabalhar para garantir o pão de cada dia na mesa. Ou mesmo naqueles que, não estando a trabalhar, não têm condições de transporte para irem ver os seus filhos jogar.

Lamento isso, mas sei que o nosso objectivo maior é garantir que os miúdos com menos condições possam beneficiar de todas as experiências de que beneficiam os miúdos com mais condições, para que possam crescer e atingir todo o seu potencial, seja ele desportivo ou não.

Bola começa a rolar. Miúdos felizes. Treinadores atentos a corrigirem posicionamentos e a tentarem ajudar os miúdos na sua tomada de decisão.

Até que surge a primeira falta. Feita por um dos nossos. Um preto. E vem uma boca da bancada. E penso: “Sem necessidade essa boca”.

E a seguir vêm mais faltas de lado a lado. E as nossas faltas a serem verbalmente – e alto e bom som – analisadas por aqueles pais que, num sábado de manhã, decidiram que aqueles miúdos negros eram todos monstros que vieram da selva da Amadora comer os filhos deles.

“Preto filha da puta. Isso é falta”; “Batam neles que eles não prestam”; “Filhos do diabo”; “Continua a fazer estas faltas que não sais vivo daqui seu desgraçado”; ” Cuidado que vais morrer”.

Algumas destas frases consegui perceber. Outras foram ditas pelos meus miúdos.

Mais uma falta. E devido à agressividade dos pais, os miúdos da outra equipa começam a ficar mais agressivos. A responder. A provocarem os meus. Mais uma falta. Vêem um miúdo e empurram pelas costas um dos meus, que se afasta incrédulo e sem perceber.

E é neste momento que paro o jogo. Chamo todos os meus miúdos e vou falar com o mister do outro lado. “Então, meu amigo? Vamos continuar com este ambiente de merda e com essas agressões?”. Resposta: “Epá, nós tentamos mostrar aos nossos miúdos para não ouvirem o que vem de fora. A se absterem disso”. Eu: “Estás a brincar, não estás? Claro que eles estão tranquilos. Não são eles que estão a ser agredidos verbalmente por estes pais. Se fosse na Amadora, estes pais já estavam todos fora do campo.”

“OK. Mas aqui não preconizamos isso. Além que eles estão a responder à agressividade do jogo dos vossos miúdos.”

Conversa de malucos, e resolvo afastar-me porque já estava fervendo. E sendo um preto (filho não original) da Amadora carrego esse estigma. Qualquer reacção mais agressiva, vou acabar dando razão a eles. E irão novamente dizer aquela frase: “Esses pretos adoram arrumar confusão e são violentos “. Porque eu sei que não tenho nem essa liberdade de ser agressivo. Porque quem vai ser agressivo não vai ser o cidadão Telmo da Luz mas sim TODOS OS PRETOS. E não consigo. Sou covarde o suficiente para não querer ter a responsabilidade desse peso.

E paro. E reflicto com o meu colega. “Vamos embora? Vamos acabar com esta palhaçada?”. Decidimos ficar. Decidimos ficar porque os miúdos não são culpados. E não podem ser eles a ir embora quando não estão fazendo nada de errado. Quando acordaram às 7 da manhã para ir jogar a bola. E ficámos. E perdemos o jogo. E foi a derrota em que tive mais orgulho neles. Porque eles foram muito superiores aos adversários. Que [neste jogo] não foram os outros meninos. Foram superiores ao racismo, ao preconceito e à estupidez humana. E perderam de cabeça levantada para tudo o que aconteceu. E no fim sorriram. Sorriram porque se divertiram. Sorriram porque são crianças de 10 anos a correr atrás duma bola com os amigos. E eu ganhei. Ganhei a certeza de que o lugar deles é ali. É em todos os campos onde o racismo impera. Onde acham que eles não têm o direito de estar e onde eles vão estar sem pedir licença. Porque este espaço é deles. É nosso.

E estou também cansado. Fiquei doente da cabeça. E com dores. E chamo-os. E damos o nosso grito. Porque somos Amadora e o que queremos é divertir, divertir e divertir. E Ninguém nos vai parar.

Adrenalina a baixar. E tomo a decisão mais difícil do dia. Peço aos miúdos que caminhem de mãos dadas em direcção aos pais dos adversários.

E peço que chegando em frente deles, soltem as mãos e os aplaudam. Que os façam sentir que são grandes miúdos. E que, no meio de alguma revolta, vão lá fazer o que o mister pediu.

Onze miúdos de mãos dadas. Onze miúdos a aplaudirem quem os agrediu num jogo que não vale nada. E novamente aqueles pais mostram que não nos merecem. Começam a vaiar os miúdos. Começam a chamar nomes. Começam a chamá-los de pretos. Começam, não. Continuam. E os meus heróis aplaudindo. Olho nos olhos. Sem medo.

E dão as costas. E aplaudem os nossos pais. Que não eram muitos, mas que sentiram essa dor. Sentiram a bravura desses miúdos.

E chega o momento de partir. E eu sinto a necessidade de pedir desculpas. Aos pais que confiaram os miúdos à nossa responsabilidade, e não sei se estive à altura dessa responsabilidade. Se as decisões que tomei foram as mais correctas. Se eu deveria ter juntado os meus miúdos e voltado ao carinho da nossa comunidade.

Mais de 24 horas depois ainda não sei. Ainda não sei se devia ter feito mais.

A única certeza que tenho é de que precisamos de fazer mais. Fazer muito mais para que uma sociedade não normalize agredir crianças dessa forma.

Uma sociedade que não prefira “estar a comer merda a ver pretos a jogarem a bola” [como disse um dos pais presentes nas bancadas].

Não faço este post atrás de likes e nem da vossa simpatia. Faço este post para alertar que a luta continua. Que ainda não estamos inseridos numa sociedade que nos vê como iguais.

Se és caucasiano e não concordas e nem te revês nestas atitudes, tira a cabeça da areia e junta-te à nossa luta. Porque a nossa luta é justa. E se és justo, tens de estar do lado certo. Do lado que combate o racismo, tanto quanto quem sofre na pele esse racismo. “Ah, o racismo não existe. Existem por aí apenas umas laranjas podres”. Então diz-me, por favor, de quantas laranjas podres precisas para ver que o laranjal está podre? Diz-me que passo a contar.

Post longo mas necessário. Um dia se passou. E eu passei esse dia a garantir que o meu filho perceba que o errado não é ele. É uma sociedade que acha que a cor da pele dele é que o define.

Treinador-adjunto do escalão de 2012 e dirigente do clube Associação Desportiva da Amadora – ADAMD