Almada revela tesouro mundial, abrilhantado por 12 jóias africanas

Mais de 200 alunos de cinco escolas de Almada juntaram heranças familiares para formar um tesouro comum, onde brilham 12 jóias de países africanos. O Afrolink foi espreitar este baú de riquezas culturais, e encontrou um plano municipal para enriquecer milhares de outras crianças de dezenas de nacionalidades. Com Mais Leitura e Mais Sucesso escolar.

por Paula Cardoso

O antigo Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, está a cerca de 4.300 quilómetros do Pico da Ibituruna, no Brasil, que fica a aproximadamente 15 mil quilómetros de Katmandu, a maior cidade e capital do Nepal.

A distância que separa os três destinos encurta-se nas escolas do concelho de Almada, à medida que os alunos trocam coordenadas sobre as suas origens, partilhadas como parte de um tesouro.

O conceito, explica a animadora Elisabete Gonçalves, assenta na exaltação da multiculturalidade presente no auto-denominado “território de muitos”.

“Em Almada vivem pessoas de todo o mundo. Cada uma trouxe o seu Património Cultural, como se fossem jóias, que aqui se juntaram a outras jóias”, observa a especialista em Educação Patrimonial, ligada ao Departamento de Educação e Juventude da autarquia.

O tesouro somos todos nós

Mais do que reconhecer valor na diversidade da sua população, o município decidiu celebrá-la nas escolas, desafiando alunos do 1.º ciclo e respectivas famílias a revelar as suas riquezas.

O espólio é acolhido por todos como “O Nosso Tesouro”, e foi agrupado no ano passado por 204 alunos de 11 países, numa expedição realizada em 14 turmas do 2.º e 4.º anos, de cinco escolas do concelho.

A recolha das riquezas culturais mobilizou também 35 famílias, que se disponibilizaram para apresentar, em sala de aula, algumas das suas jóias.

O encontro permitiu não apenas aproximar destinos geográficos – do campo cabo-verdiano do Tarrafal à capital nepalesa, passando pelo brasileiro Pico da Ibituruna –, como cruzar tradições festivas, e misturar sabores gastronómicos, entre tantas outras manifestações de cultura.

“Tudo começa nas pessoas. Elas são o primeiro de todos os patrimónios”, destaca Elisabete, com a autoridade de uma licenciatura em História, e 25 anos de experiência no Centro de Arqueologia de Almada.

Guardiã-mor do “Nosso Tesouro”, a animadora dinamiza a actividade recorrendo a uma arca, onde um objecto salta à vista: um espelho que reflecte a frase “O tesouro és tu”.

“É a primeira coisa que aparece quando se abre o baú, para que todas as crianças vejam que a identidade pessoal é o primeiro património que devem valorizar”, destaca Elisabete, acrescentando que só depois desse reconhecimento individual é que a expedição parte à descoberta do património local, nacional e mundial.

Jóias em exposição

Com 23 jóias internacionais recolhidas, das quais 12 são provenientes de países africanos, “O Nosso Tesouro” prepara-se para sair da escola, através de uma exposição municipal.

A mostra, prevista para Setembro, deveria incluir também as riquezas de outros 10 estabelecimentos de ensino de Almada, cuja participação a pandemia inviabilizou. Ou, será melhor dizer adiou?

A interrogação deixa-nos, por enquanto, sem resposta, porque o “Nosso Tesouro” faz parte de um projecto-piloto de combate ao insucesso escolar, ainda sem luz verde para prosseguir no próximo ano lectivo.

Intitulado “Mais Leitura, Mais Sucesso”, o programa tem ligação embrionária ao estudo “A diferença que a escola pode fazer: o sucesso escolar no concelho de Almada (4.º e 6.º ano)”.

O trabalho, realizado no centro de investigação do ISCTE-IUL, sob coordenação das professoras Teresa Seabra e Susana da Cruz Martins, mostra como a literacia e o envolvimento das famílias e comunidades impactam o desempenho dos alunos.

“A partir da análise dos resultados escolares dos agrupamentos do concelho de Almada, observou-se que encontramos níveis mais altos de insucesso, com maiores taxas de abandono e retenção escolar, em estabelecimentos localizados nos territórios mais desfavorecidos a nível socioeconómico”, indica Elisabete Gonçalves.

O estudo do ISCTE constatou igualmente que esses contextos de maior vulnerabilidade e piores desempenhos estudantis abrangem freguesias habitadas por populações imigrantes, em particular oriundas dos PALOP.

Mais de 23 mil alunos abrangidos

As conclusões lançaram a Câmara Municipal de Almada numa missão para tentar perceber, no terreno, como é que, no dia-a-dia, cada comunidade contribui para os resultados dos seus alunos.

O trabalho concretiza-se através do “Mais Leitura, Mais Sucesso”, programa inserido no Plano Municipal de Promoção do Sucesso Educativo de Almada e destinado a alunos do 1.º ciclo e do ensino pré-escolar.

Até agora viabilizado por fundos comunitários, o projecto é executado pelo Departamento de Educação e Juventude, e abrange uma população de 23.330 alunos, oriundos de 44 países, dos quatro cantos do mundo.

Além de desvendar o tesouro cultural dos estudantes, permitindo envolver os familiares no percurso pedagógico das crianças, o projecto-piloto promoveu uma série de outras actividades com o mesmo foco: abrir a escola à comunidade.

É disso exemplo o “Baralho com Estórias”, tal como “O Nosso Tesouro” orientado para juntar, no espaço da sala de aula, alunos e famílias.

Mas a intervenção do “Mais Leitura, Mais Sucesso” não se limita a estreitar os laços com os pais e outros encarregados de educação, através da dinamização de actividades lúdico-pedagógicas – no âmbito das AEC´s (Actividades de Enriquecimento Curricular)  e das AAAF’s (Actividades de Animação e de Apoio às Famílias).

Formar para a celebração da diversidade

Outro dos eixos centrais do projecto são as acções de sensibilização e capacitação dos agentes educativos e pessoal não docente.

A intervenção junta no terreno, além da guardiã patrimonial Elisabete Gonçalves, outras quatro animadoras, cada uma com a sua especialização.

Sofia Rodrigues, por exemplo, é licenciada em Serviço Social, e traz para a equipa a experiência em trabalho comunitário, desenvolvido em contacto directo com as populações de alguns dos bairros de Almada sinalizados como mais vulneráveis.

O olhar de proximidade foi fundamental, entre outros aspectos, para promover, junto de professores bibliotecários, uma acção de formação sobre a importância da introdução de histórias diversas na dinâmica educativa.

 

“Há livros que podem fazer a diferença dentro das práticas pedagógicas diárias, por espelharem realidades das comunidades em que estão inseridos, permitindo que se vejam representadas”, destaca Sofia, sublinhando a importância de ir ajustando abordagens.

“Nem todas as culturas estão familiarizadas com os livros, porque têm tradições orais muito fortes”, nota a assistente social.

Mais do que identificar as especificidades de cada meio, o “Mais Leitura, Mais Sucesso” mostra, aponta Sofia, “outros caminhos de acesso” ao conhecimento, “outras portas e janelas para encurtar distâncias”. Abertas para a valorização da diversidade humana. Celebrada como um tesouro. Nosso!