Aprendeu que o negro não sabe nadar, agora mergulha online pela inclusão

Professora de natação há quase duas décadas, depois de um abandono precoce da competição, Ana Maurício encontrou nas piscinas um território elitista, demarcado pela discriminação étnico-racial e socioeconómica. A partir dessa experiência, iniciada em Portugal e agora vivida em Inglaterra, a também especialista em Ensino Especial decidiu lançar a plataforma online uTeach to Swim. Um projecto que pretende pôr todos a nadar, até mesmo fora de água.

por Paula Cardoso

Única negra quando estava a aprender a nadar, única negra enquanto disputava provas de natação, única negra desde que se especializou no ensino, Ana Maurício revive hoje a sua história de solidão aquática, entre preocupações de instinto maternal.

“Tenho uma filha de 11 anos que me fez ver que continua tudo igual”.

Em Inglaterra, onde vive há mais de uma década, tal como em Portugal, onde nasceu e cresceu, Ana encontra nas piscinas um ambiente elitista, financeiramente inacessível para muitas famílias, e esvaziado de diversidade étnico-racial.

Inconformada com esta realidade, a ex-atleta, hoje professora de natação e licenciada em Ensino Especial, decidiu lançar a plataforma uTeach to Swim.

Ensinar a nadar pela web

Online desde o passado mês de Fevereiro, no Facebook e Instagram, a iniciativa, desenvolvida em parceria com dois colegas de aventuras aquáticas, assume a ambição de democratizar o acesso às piscinas, a partir de casa.

“O intuito é ensinar pessoas comuns a ensinar outras pessoas a aprender a nadar”, introduz a empreendedora, esclarecendo que as lições também são indicadas para quem apenas pretende aprender.

“Temos previsto um pacote inicial com 10 aulas em vídeo, e também um programa para o Ensino Especial”, antecipa Ana, ainda a recuperar os meses perdidos no confinamento.

“Quando íamos avançar para as filmagens deu-se a Covid”, explica a especialista, já de volta às piscinas.

O projecto, em construção, alerta para a importância de contornar os obstáculos financeiros no acesso à aprendizagem – o conjunto de 10 aulas custará 15 libras -, e previne para a urgência de combater o enviesamento dos professores.

“Os manuais de formação continuam a transmitir a ideia de que os negros não sabem flutuar, por causa da densidade óssea”, clarifica a ex-atleta, que, desde as primeiras braçadas, sentiu o peso da cor.

“Sempre que chegava para fazer a aula, os meus colegas comentavam: ‘Lá vem a preta. Cuidado! O chocolate dela vai derramar aqui na água”.

Corpos negros “condenados” a afundar

O bullying constante dos pares, vivido algures a partir dos seis, sete anos – altura em que começou a treinar no Sporting de Portugal –, tornou-se insustentável na adolescência, precipitando o abandono precoce da competição.

“Era muita pressão, estava sempre a ter de lidar com comentários racistas, que me deixavam triste”, recorda Ana, frisando que em todo o processo se sentiu abandonada.

“Chegava a casa e tinha os meus pais, conversava com eles, mas também precisava dos professores, e nunca houve um entendimento e apoio em relação a isso”.

Apesar de ter entrado na natação do Sporting por iniciativa de um professor – que a convidou a partir do desempenho que teve nas aulas do desporto escolar –, a antiga nadadora,que começou a ensinar antes dos 18 anos, constata que o sistema está montado para discriminar corpos negros.

Em causa está a indicação, durante as aulas de formação, de que a raça é uma das variáveis que interfere na flutuabilidade do atleta, assumindo-se como facto que os negros, por causa de uma maior densidade óssea, estão “condenados” a afundar.

A discriminação do balneário

“Quem é que vai apostar numa criança negra, treinando-a para a competição, se achar que não tem hipóteses de ganhar?”.

Depois de cerca de seis anos a tentar manter-se à superfície, Ana recorda que deixou as provas com 13 ou 14 anos, destino que considera indissociável da falta representatividade negra nas piscinas.

“Não era apenas dentro da água que eu era discriminada. Como não havia nenhum professor negro, ninguém entendia as minhas necessidades. Por exemplo, porque é que demorava mais tempo nos balneários”, assinala a hoje especialista em Ensino Especial.

Além dos cuidados capilares próprios do afro, Ana lembra que as peles negras têm necessidades de hidratação diferenciadas.

“Temos de pôr creme, se não quisermos ficar cheios de manchas esbranquiçadas. Então imaginem: saio da natação com a sensação de que o professor já não aposta muito em mim;  vou para os balneários sem margem para tratar do cabelo nem para a pele; corro para a escola com o cabelo todo à toa, sem creme na pele, sou gozado por causa disso…até que chega a um ponto em que digo: vou desistir”.

Hoje com 34 anos, a ex-nadadora especializa-se noutro tipo de competição aquática: estrutural.

“Está mais do que na hora de as coisas mudarem, e se ninguém está a falar sobre isso eu tenho de o fazer, porque já não posso ficar calada. Não posso deixar que o que aconteceu comigo se continue a repetir geração após geração”.

Por piscinas mais inclusivas

Para dar a volta à narrativa discriminatória, Ana exorta todos a navegarem na plataforma uTeach  to Swim.

A par do objectivo de promover uma maior representatividade negra nas pistas de natação, a ex-atleta aponta a necessidade de preencher carências na formação: “Falta conhecimento, por exemplo, sobre como ensinar a nadar uma criança com autismo, síndrome de down, ou uma deficiência física”.

Atenta a esses desafios, a professora conta que foi para os enfrentar que decidiu juntar à sua formação desportiva uma licenciatura em Ensino Especial.

“Acho que todas as pessoas têm de ter a possibilidade de aprender a nadar, independentemente de maiores ou menores habilidades. Por isso, os professores devem ter conhecimento para ensinar qualquer criança. Caso contrário, estarão a criar exclusão”, alerta.

Natação salva-vidas

Apologista da abertura das piscinas a todos, a especialista não tem dúvidas de que a plataforma uTeach to Swim, já com parceiros nos EUA e na Nigéria, é um passo certo na direcção da inclusão que defende.

“Como não queremos criar um espaço exclusivo para pessoas que saibam nadar, nos vídeos, com duração aproximada de 20 minutos cada, vamos ensinar um passo a passo, incluindo normas de segurança”.

A aprendizagem, garante Ana, não só está ao alcance de todos, como, numa fase inicial, dispensa o acesso a uma piscina e, no limite, até mesmo a água. “É possível ensinar movimentos que podem ser treinados na banheira e no chão de casa”.

Por cada gesto, a professora contabiliza um potencial salva-vidas:  “Uma coisa é aprender a dar umas braçadas e pernadas, como se faz no desporto escolar, outra é saber nadar, ao ponto de evitar o afogamento numa situação de perigo”.