Das ciências à consciência da Comunicação, Rita desmonta ódios

Metade da vida no Brasil, metade em Portugal, Rita Montanini revela-se inteira em cada uma das suas pertenças, enraizadas em origens italianas e africanas, foco de celebração, mas também de múltiplas discriminações. Profissionalmente desmontadas com várias especializações em Comunicação.

por Paula Cardoso

Na universidade, enfrentou o inimaginável: ouviu que os negros não têm capacidade intelectual, mas que ela, por ter vindo do Brasil, teria 1%. “Aquilo me chocou imenso, porque foi a primeira vez que eu tive algo verbalizado assim”.

No banco, encarou o impensável: uma simples operação de caixa transformou-a em suspeita. “Fui ao balcão depositar um cheque do meu irmão, e aí a pessoa disse: ‘Conheço de quem é, você deve ter roubado.”

No trabalho, escutou o inconcebível, na busca por um lugar à mesa, durante a hora de almoço: “Se você, negra, dividir o mesmo espaço comigo, eu saio”.

No círculo doméstico, encontrou o incompreensível, no calor das reacções ao assassinato de George Floyd. “Tive um familiar do meu marido que me disse: ‘Deveriam todos morrer porque esses negros são todos bandidos’”.

Os episódios de violência racial, vividos por Rita Montanini nos quase 20 anos de vida em Portugal, sucedem-se muito além destas linhas de introdução, e, expressam bem a necessidade do trabalho que desenvolve.

Comunicar humanidade

Formadora em comunicação assertiva, inclusão, discurso de ódio e liderança, mindfulness, género, igualdade e cidadania, a luso-brasileira, que também actua como coach, soma competências em defesa da humanidade.

“Tenho uma mistura muito grande. Acho que essa diversidade é que me forma”, assinala Rita, que junta à origem afro-brasileira raízes europeias.

“O meu avô paterno é italiano, a minha avó paterna é indígena, a minha mãe é de ascendência italiana com negro. Então como é que eu posso discriminar alguém?”.

Anti-discriminadora nata, a especialista fortalece o combate ao racismo com uma aliança valiosa: “O meu marido, como está no lugar de privilégio de português branco, me dá suporte. Ele me fornece gratuitamente as ferramentas que preciso”.

A parceria conjugal tornou claro, por exemplo, que a via de mudança passa pela afirmação intelectual.

“Como já foi estigmatizado que não temos intelectualidade, o que acontece quando ela é colocada?”.

Provas de maioridade intelectual

A resposta tem sido comprovada no terreno. Primeiro na universidade, agora no contexto profissional, e, pelo caminho, sem perder de vista o circuito familiar e social.

“No meu Mestrado, eu mostrava coisas que os professores nem acreditavam que existiam na Comunicação”, assinala Rita, que anulou o ‘atestado’ de menoridade intelectual com inúmeras provas de aptidão académica.

O desafio foi cumprido na Universidade Fernando Pessoa do Porto, cidade de destino desde que aterrou em Portugal, proveniente de São Paulo.

Na bagagem trazia a licenciatura em Comunicação Social, com ênfase em Jornalismo, e planos de novos estudos, concretizados numa pós-graduação em Relações Internacionais, mais tarde alargada ao Mestrado em Ciências da Comunicação.

“Esse percurso académico é o suporte para o meu trabalho de formadora”, destaca a especialista, de 39 anos, lembrando que a demonstração de competências está sempre presente.

“No outro dia, fui dar aula para pessoas licenciadas, e como apareci do lado da coordenadora, que é uma pessoa branca, pensaram que ia apenas dar apoio. Quando percebem que a formadora seria eu, já vi os olhos arregalados. Por isso comecei a descer o discurso todo”.

Ironizar para superar

O reconhecimento dos formandos não demorou, e, com ele, Rita accionou uma das ferramentas que amadureceu à medida dos embates raciais: a ironia.

“Quando vi a mudança de expressão, disse: ‘Essas vossas caras de aprovação é porque vocês perceberam que na verdade eu tenho conteúdo para informar o que vocês ainda nem imaginam que não sabem. Aí, teve uma pessoa que falou assim: ‘Não esperava nem imaginava que a nossa formadora nesse contexto fosse negra’. Ouvi aquilo e aproveitei para devolver: ‘Já viu? E eu que não imaginava que você estaria desse lado me apoiando”.

Com o mesmo tom trocista, a luso-brasileira afasta os olhares de policiamento que, aqui e ali, atravessam rotinas de compras: “Está olhando porquê, você quer pagar minha conta?”.

A cada encontro racialmente demarcado, a formadora afina as próprias estratégias de comunicação.

“Antes, se o familiar do meu marido chegasse para mim e falasse que os negros são todos uns vândalos, eu ficaria furiosa, contaria até três e, já nem no três eu explodia. Agora, eu começo a dar risada, pensando: ‘Como intelectualmente você está retrógrado, você não quer aprender, quer ficar dentro desse privilégio, não quer ter responsabilidade sobre os erros sociais cometidos”.

A dor da cor

O reconhecimento de que não dá para dialogar com quem não quer caminha de mãos dadas com o diagnóstico de um racismo à portuguesa.

“Já ouvi coisas que me deixaram horrorizada. O português vê isso como ser frontal, e acha que a frontalidade é uma questão até de educação, de ser honesto e verdadeiro”, aponta Rita, de memória voltada para as falas racistas que lhe foram dirigidas no meio académico.

“Depois um professor questionar as minhas capacidades, só por ser negra e brasileira, procurei o director do mestrado, que normalizou tudo. Ele falou: ‘Fica tranquila. Você tudo bem, a gente acredita que tenha um bocado de intelectualidade, mas os outros colegas seus, negros vindos de África, a gente desconsidera”.

A história demonstrou a força do racismo sistémico em Portugal – “fui aconselhada a não apresentar queixa, porque se o fizesse acabaria impossibilitada de fazer qualquer curso ali” –, e reforçou uma percepção.

“Além do racismo estrutural, existe uma manifestação de racismo que para mim é o pior: ‘Eu não quero que você esteja aqui, e não estou interessado em discutir esse assunto, eu quero permanecer assim’. Acho que isso é mais doloroso”.

Disposta a transformar a dor da cor em conhecimento, Rita assume o desafio de investigar “como é que uma mulher negra mantém os sentimentos, neste meio completamente patriarcal e branco”.

A missão, antecipa a luso-brasileira, poderá passar por um doutoramento, ou pela ocupação de novos espaços.

“As redes sociais nos dão voz, nos possibilitam falar do que estamos a vivenciar. Se eu quiser, eu não me calo, o outro e a outra também não. Então, juntos, temos o poder de estourar igual pipoca: para todos os lados”. Pela igualdade.