A cultura queer negra em Portugal
celebra-se na Casa e na ‘Colmeia’ do DiDi

Em Lisboa há dois anos, depois de um périplo europeu marcado por uma temporada em Inglaterra, o carioca Diego Cândido, ou simplesmente Di, populariza-se com os eventos “House of DiDi” e “Bee”, ligando vozes queer e marginais em festas, arte, performance e cultura. Mas é no Direito que encontramos a sua formação académica, profissionalmente tarimbada no apoio legal a startups e entidades da indústria criativa, experiência enraizada num forte compromisso activista. Destinado a abrir novos caminhos: “O que vai à frente puxa o que vem lá atrás”.

por Paula Cardoso

Primeiro veio Nova Iorque. Seguiram-se Amesterdão, Berlim, Paris, Bruxelas, Madrid e Londres, num périplo europeu agora fixado em Lisboa. De cidade em país, entre destinos de formação, turismo e trabalho, Diego Cândido transporta um passaporte vitalício, que é também uma herança familiar.

“Eu fiz um curso de inglês na minha adolescência, que minha mãe pagou aos trancos e barrancos, e foi ele que me possibilitou, e possibilita ainda hoje, todas essas realidades. Hoje sei que teve uma grande relevância para minha carreira”.

Filho único, nascido há 34 anos no Rio de Janeiro, Di, como é mais conhecido, começou por romper fronteiras na Educação, antes de traçar novos limites geográficos no seu mapa-mundo.

“Venho de uma família sem muitos privilégios, onde, na verdade, eu fui a primeira geração que teve tantas possibilidades de estudar”, conta o carioca, formado em Direito no Brasil, e, neste momento, a frequentar, em Lisboa, o mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias.

A par dos planos académicos, a presença em Portugal sobressai pela agenda de eventos, dinamizada a partir dos eventos “House of DiDi” e “Bee”, já reconhecidos no programa das festas lisboetas, pela ligação de vozes queer e marginais, num ambiente que intersecta arte, performance e cultura.

Essa ponte, explica, Di, começou a ser construída no Brasil. “Iniciei minha trajectória profissional dentro do campo jurídico, mas depois contactei com o segmento cultural, de lazer e atendimento”.

A experiência conta-se, por exemplo, pela curadoria no Festival de Cinema Negro do Rio de Janeiro, pela organização regular de festas voltadas para o segmento negro, e pela associação a colectivos, como o Afrobapho e o Batekoo Brasil.

O sonho americano e o passaporte linguístico

Agora em Lisboa, Di retoma os caminhos de celebração amadurecidos na ‘Cidade Maravilhosa’, depois de quase um ano de florescimento na ‘Grande Maçã’.

“Foi nos Estados Unidos que eu tive pela primeira vez acesso a uma cultura queer preta. Eu vi que era normal ser diferente, que eu podia ser diferente e que, a par da minha diferença, existia uma infinidade de outras diferenças”.

 

O voo internacional, inaugurado de forma transformadora em Nova Iorque, é indissociável daquele passaporte linguístico conquistado na juventude.

“Sou muito grato à minha mãe, por esse insight que ela teve, de pagar esse curso de inglês para mim, quando, na verdade, na época eu nem gostava muito”, reitera, sublinhando a importância do suporte parental no seu destino.

“Meus pais são separados desde quando eu tinha dois anos de idade, então fui meio criado pelos meus avós, pessoas que eram muito humildes. Vivia dentro de um alicerce de uma família cristã Baptista bem tradicional nesse ponto, mas, ao mesmo tempo, o meu pai me instruiu, muito cedo, para falar sobre questões de negritude, de identidades, para falar que eu podia ser muitas coisas”.

Conciliação de identidades à prova de violências 

As lições paternas, bem presentes nas memórias do início da adolescência – “a partir dos meus 12, 13 anos” –, permitiram a Di um contacto precoce com autores negros, celebrizados pelas inquietações de recorte racial.

“Todo esse processo fez com que eu me organizasse diante das minhas identidades”, nota o jurista, apontando alguns dos “grandes nomes” que facilitaram essa construção.

A lista inclui intelectuais brasileiras, como Lélia Gonzalez e Conceição Evaristo, mas também referências americanas, como Martin Luther King, Malcolm X, James Baldwin e Angela Davis.

“Meu pai me apresentava tudo e dizia: ‘Filho, você assim vai saber, você vai se guiar”.

A orientação, recorda Di, alicerçou-se igualmente na leitura da revista Raça Brasil, e funcionou como barreira de protecção contra inúmeras violências.

A começar pelo colégio da infância, espaço ao qual conseguiu aceder através de uma bolsa.

“Por mais que falassem que tinha cabelo Bombril [palha-de-aço], eu não tinha vergonha do meu cabelo. Eu comecei a fazer tranças afro na boa, comecei a valorizar o meu black, isso desde muito cedo”.

O amor-próprio, fundamental para suportar o ‘peso’ de ser o único aluno negro da turma, foi igualmente determinante para enfrentar o racismo estrutural no mercado de trabalho.

“Nunca me senti deslegitimado pelos nãos que recebi, pelos tapas na cara…pelo chega pra lá”, garante, recordando um processo de despedimento bem revelador das lógicas de discriminação. “Trabalhava numa firma de advogados quando mudou a directoria, e, no meio dessa troca, ouvi isso: ‘Não admito ter uma pessoa preta e bicha como advogado, num cargo de gerência da empresa em que estou sendo director”.

Nove meses depois dessa fala, ouvida entre corredores, a demissão do advogado Diego Cândido, “preto e bicha”, materializava-se. “Seja menos preto, seja menos gay”, é a ladainha que ressalta de cada crítica revisitada.

“Você pode tudo, mas você precisa saber em que ponto você está”

Embora empoderado para resistir a essa e outras tentativas de repressão, o jurista e produtor cultural recorda que é preciso ir buscar aconchego aos ensinamentos familiares. “Meus pais me disseram: ‘Você pode tudo, mas você precisa saber em que ponto você está, que terreno você está pisando é saber lidar com essas nuances”.

No regresso às memórias desse processo de aprendizagem, Di aponta Nova Iorque como um destino incontornável.

“A minha vivência nos Estados Unidos foi muito relevante para que eu também estabelecesse as minhas identidades afrodiaspóricas, no sentido dos trânsitos, das diversas formas do que eu poderia ser”.

A viagem, realizada há uma década, aconteceu no final da formação universitária, a partir da candidatura a uma bolsa. “O meu processo de coming out também veio de lá”, recorda.  “Foi a primeira vez que eu absorvi uma relação de um espaço completamente multicultural onde existia gente de todo o mundo, e existia também uma comunidade queer preta. E aí, quando eu voltei para o Brasil, eu voltei um pouco mais confiante, um pouco mais me amando, no sentido de me sentir mais confortável, inclusive com a minha sexualidade”.

A experiência facilitou igualmente a especialização profissional: “Mesmo no Brasil, comecei a trabalhar dentro de um alicerce bem global, com empresas estrangeiras, e em meios multiculturais”. A abertura para o mundo acabou por abrir as portas de marcas internacionais, como a emissora britânica BBC – com a qual colaborou num documentário sobre cultura queer preta –, o festival Afropunk, os Jogos Olímpicos, ou a 7.ª Conferência Bianual da Rede Afroeuropeans: “In/Visibilidades Negras Contestadas”.

O destino sem fronteiras cruza-se em Lisboa com o do sociólogo Rodrigo Saturnino, a quem se alia na construção de uma plataforma digital para promover a cultura queer da negritude na diáspora de Portugal, através do mapeamento de artistas, criadores e colectivos queer liderados por afrodescendentes.

Em incubação está igualmente uma Parada Preta Queer, que deveria ter acontecido em Março, mas acabou adiada pelo confinamento. A ansiada marcha, explica Di, surge como uma forma de protesto, planeada para derrubar múltiplas resistências, tanto nos movimentos feministas, como nos LGBT, e anti-racistas.

“Olha, a gente está aqui. Ouçam nossas vozes”, apela o carioca, incansável na missão de produzir mudança colectiva: “O que vai à frente puxa o que vem lá atrás”.