A Rainha que empodera a saúde mental
da mulher negra

 

As cantoras Shiva, Telma Tvon, Khira e Annia uniram vozes para gravar a música “Rainha”, produzida à medida do último Ciclo de Conversas “Chá de Beleza Afro”, centrado na “Saúde Mental da Mulher Negra”. O tema serviu de mote para o Afrolink ir ao encontro de Neusa Sousa, criadora desse espaço de diálogo, desenvolvido como uma plataforma de expressão do poder feminino.

por Paula Cardoso

Umas atrás das outras, as perguntas sucedem-se: “Já paraste para realizar o que pensas sobre ti mesma? És quem queres ser, ou apenas o que esperam que tu sejas?”.

A cada questionamento, abre-se caminho para novas tomadas de consciência: “Valorizas o que fazes? Sentes-te livre? Ou és apenas mais uma alma que neste mundo sobrevive?”.

O ensaio de interrogações surpreende-nos na abertura da canção “Rainha”, gravada pelas cantoras Shiva, Telma Tvon, Khira e Annia, em resposta ao desafio lançado por Neusa Sousa, no âmbito do último Ciclo de Conversas “Chá de Beleza Afro”.

“Eu queria criar uma música com base no tema desta edição, que foi a saúde mental das mulheres negras. Então falei com a Telma Tvon, porque temos já uma ligação, explicando-lhe que estava à procura de uma menina que escrevesse uma letra sobre o assunto”, conta a são-tomense de 28 anos.

O contacto acabou por encaminhar Neusa até à cantora Shiva, que não só está familiarizada com a temática – por lidar directamente com um diagnóstico de depressão –, como já tinha uma letra preparada.

“Ela deu apenas uns retoques, porque tudo o que me mostrou ia ao encontro daquilo que eu queria”, explica a também repórter, destacando a importância da mensagem.

“A música não fala de algo inventado, ela reflecte as vivências da Shiva e de outras pessoas que passam ou passaram por doenças relacionadas com o psicológico. Por isso, quase todas as mensagens que tenho recebido é de pessoas que se identificam com a letra, que dizem que as representa, e retrata bem o que acontece no seu dia-a-dia”.

Humanizar a mulher negra

Os testemunhos, considera Neusa, evidenciam a necessidade de se promover e aprofundar o debate sobre saúde mental, exactamente como se propôs fazer com a 4.ª edição do Ciclo de Conversas “Chá de Beleza Afro”, realizada no passado dia 17 de Outubro.

 

Neusa Sousa, criadora do Chá de Beleza Afro

“Uma das conclusões a que chegámos é que falta estudar o impacto das doenças mentais na população africana e negra em Portugal. Não existem dados. Por outro lado, nota-se que, por falta de informação, ou por crenças culturais, ainda existe, na nossa comunidade, a ideia de que quem vai a um psicólogo ou a um psiquiatra é maluco”.

Como se não bastasse a resistência em procurar cuidados mentais, a promotora cultural assinala que, em muitos casos, essa busca se traduz em experiências traumáticas.

“Ouvimos relatos de mulheres que precisaram de cuidados e se depararam com a falta de empatia por parte dos profissionais”, lamenta Neusa, frisando que é fundamental derrubar o mito, segundo o qual as mulheres negras são sobre-humanas.

“Os próprios profissionais olham para as africanas como pessoas que aguentam tudo. Esquecem-se que podemos estar habituadas a lutar, sim, mas também temos o direito a ser frágeis”.

A consciência da humanidade da mulher negra ressoa de todas as notas de “Rainha”, entoadas em tom de autodiagnóstico induzido.

“Essa dor que trazes dentro, de um passado em segredo, é a fonte da tua força ou a razão do teu lamento? Quando te olhas ao espelho reconheces a tua essência? Quando abres a porta para o mundo tens que fingir quando ergues a cabeça? Sentes-te só? Sentes-te perdida? Sentes-te amada? Sentes-te viva? Pensas em ti?”.

As perguntas ecoam a partir de reflexões propostas por Telma Tvon e, além de nos ampararem na abertura da música “Rainha”, prometem acompanhar-nos numa exposição fotográfica.

Foto de grupo de Ricardo Costa

O corpo ideal é o teu corpo

A mostra, programada para Março de 2021, pretende abordar o impacto da relação com o corpo na nossa saúde mental.

“O foco é mostrar que o corpo ideal é o teu corpo”, antecipa Neusa, empenhada em projectar novos padrões de beleza, contra um chorrilho de pressões estéticas.

“Quero ver todo o tipo de corpos, penteados e fisionomias africanos, porque a diversidade da mulher negra nunca está representada, dificultando muitas vezes a aceitação da nossa imagem”.

Da vontade à realidade, os planos da promotora cultural mantêm-se fiéis desde o primeiro projecto: o blogue “Minha Doce África”.

Criado em 2015, este espaço é agora exclusivamente dinamizado no Facebook, para, nas palavras da autora, “mostrar o que de melhor existe no continente africano, sendo que o foco são as mulheres, o empoderamento da mulher africana/afrodescendente e a visibilidade que esta está cada vez mais a conquistar fora do continente africano”.

A missão, iniciada no blogue “Minha Doce África”, estendeu-se ao “Chá de Beleza Afro” em 2017, evento que se tornou uma rubrica do programa Bem-Vindos, da RTP África, formato no qual a Neusa se estreou como produtora de conteúdos, depois de se licenciar em Gestão de Turismo.

Agora, para além de manter as tarefas nos bastidores, a são-tomense assume um papel diante das câmaras: realiza reportagens e conduz entrevistas dentro do quadro “Chá de Beleza Afro”, que depois da entrada na RTP África chegou à Televisão Pública Santomense, TVS, na forma de um programa televisivo.

A empreendedora aventura-se ainda no mundo dos negócios com o Pitéu da Xinda, projecto através do qual fornece comida caseira, com destaque para as especialidades de São Tomé e Príncipe.

Os multiempreendimentos não passaram despercebidos aos organizadores do “Telaventos”, iniciativa nascida em Londres para difundir a cultura são-tomense e os seus jovens junto da comunidade imigrante no Reino Unido.

Atentos ao percurso da repórter, os promotores do “Telaeventos” distinguiram-na com o prémio “O Fantástico da Diáspora”, atribuído numa gala realizada em Julho de 2019 na capital britânica.

Mais de um ano depois do reconhecimento em Terras de Sua Majestade, no reino dos projectos de Neusa sobressai uma “Rainha”. Coroada em defesa da saúde mental da mulher negra.

Ouça a música Rainha no YouTube

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