A representatividade que abriu o mundo à judoca cabo-verdiana Dysa

O sentimento de pertença ao ver a imagem de uma mulher parecida consigo a atirar pessoas ao chão levou a judoca Adysangela Moniz a acreditar que também poderia ocupar esse lugar. A confiança encorajou-a a construir uma carreira desportiva, abrilhantada pela participação nos Jogos Olímpicos de Londres, em representação de Cabo Verde, o seu país de origem. O Afrolink foi conhecer a sua trajectória, que há três anos passa pelo Plantel Olímpico e Sénior do Sport Lisboa e Benfica.

por Filipa Bossuet

Adysangela Moniz, mais conhecida por Dysa, cresceu na Ilha de Santiago, em Cabo Verde, a assistir a competições desportivas na televisão, sem saber que se tratava dos Jogos Olímpicos. Aos 12 anos, já sentia um desejo enorme de estar no mesmo lugar que os atletas que via, muito por influência do avô, do pai, e dos restantes homens da família.

“O meu avô foi boxeador e ensinava boxe ao meu pai, tios e primos mais velhos. Não tive a oportunidade de aprender com ele, mas o meu pai dizia-me sempre para praticar uma actividade física que me desse prazer”, conta a atleta ao Afrolink.

O conselho paterno levou Adysangela, hoje com 34 anos, a experimentar várias modalidades, entre elas o tae bo e o boxe, até se inscrever nas equipas de andebol e futsal da escola secundária que frequentava em Cabo Verde. Acabou por somar três anos de convocatórias escolares, período marcado pela conquista dos títulos de campeã e vice-campeã no campeonato do liceu.

Mas não se ficou por aí. Por influência do professor de educação física, Dysa adicionou ao seu currículo desportivo a capoeira.

A modalidade, globalmente popularizada enquanto expressão cultural afro-brasileira, trouxe a Adysangela a oportunidade de conhecer o judo, desporto que a atleta diz ter mudado a sua vida.

“Estava a entrar no liceu para ir à aula de capoeira, quando vejo uma folha colada na porta de entrada. A folha tinha uma imagem de uma gordinha a mandar os outros para o chão. No fim da aula, voltei a espreitar e fiquei ali de pé a olhar para aquela imagem durante algum tempo”, recorda.

A sensação de que poderia ocupar o mesmo lugar que a mulher da fotografia foi tão forte que, quando chegou a casa, Adysangela apenas soube explicar ao pai que o judo era o espaço que tanto procurava.

O poder da representatividade

“Sabes quando vais a um lugar e vês uma pessoa com quem te identificas e te faz sentir no lugar certo? Que não te faz sentir a única, nem diferente de todos os outros? Eu senti que aquela pessoa era igual a mim, e isso queria dizer que eu me podia enquadrar naquele espaço. Senti-me pertencente a algum lugar”, reflecte a judoca, sublinhando que hoje tem noção do poder da representatividade.

“Eu identifiquei-me com aquela gordinha. Se me tivesse deparado com uma pessoa magra, nunca teria ido para o judo”, acrescenta a atleta da categoria +78kg.

 Dysa tinha 16 anos quando teve o primeiro contacto com o desporto de combate. Surpreendeu o professor com a habilidade na técnica de queda, e a modalidade passou a ocupar três dias da sua semana, preenchida durante algum tempo com a capoeira, o andebol e futsal.

“No secundário fui para a área técnica, tinha aulas de manhã e à tarde, só chegava a casa às dez da noite. Ia para a escola com duas mochilas. Toda a gente achava que eu era maluca, mas eu adorava a vida que tinha”.

O intenso ritmo diário acabou, contudo, por abrandar. Seja porque se magoou no tornozelo enquanto praticava capoeira, seja porque a equipa de andebol se extinguiu, seja por ter deixado o futsal. Pelo caminho, Adysangela também se lesionou no judo, mas esta foi a única modalidade que não abandonou.

“Já quis desistir do judo quando lesionei o joelho num treino de preparação para uma prova nacional, mas sempre que entrava no meu quarto via o meu kimono e ficava com saudades”, conta a atleta, frisando sempre a importância do apoio paterno para que não desistisse dos seus objectivos.

O voo internacional

A par da devoção ao desporto, Dysa manteve sempre a dedicação aos estudos.  Licenciada em Contabilidade, Administração e Auditoria pelo Instituto Superior de Ciências Económicas e Empresariais, de Cabo Verde, aos 20 anos a judoca já trabalhava numa empresa de materiais de construção. A actividade profissional permitiu-lhe custear a presença em provas internacionais de judo, numa altura em que os apoios para a prática desportiva escasseavam.

Com os seus próprios meios, a atleta disputou a sua primeira competição internacional em Portugal, inserida na 2.ª edição dos Jogos da Lusofonia, realizada em 2009.

Na ocasião, Dysa participou em dois combates, que lhe valeram um 5º e um 9º lugar. Um momento que a judoca considera memorável, também por ter sido a primeira vez que saiu de Cabo Verde.

Determinada a prosseguir com o voo internacional, no regresso a casa Adysangela continuou a juntar dinheiro para financiar as suas provas. Os resultados não demoraram a surgiu: no espaço de dois anos, em 2011, a atleta participou no African Championships Dakar e no World Championships Paris.

“Tinha de pagar o bilhete de avião, a estadia do hotel e roupa de judo. Em Dakar negociava todos os preços para pagar o mínimo possível, e em Paris fiquei na casa da minha tia para pagar menos dias de hotel”. A ‘ginástica financeira’ rendeu o 7.° lugar no Campeonato de África, e abriu caminho para as Olimpíadas.

A dor como combustível do progresso

A via olímpica confirmou-se a 9 de Maio de 2012, dia em que Adysangela celebrava o seu 25.º aniversário e logo, às 7 da manhã, recebia a informação de que estava classificada para os Jogos Olímpicos de Londres, via quota continental.

Ainda no quarto, sem acreditar no que tinha acabado de ouvir, a judoca cabo-verdiana ficou algum tempo a olhar para o telemóvel perplexa com a novidade. “A minha família veio cantar-me os parabéns e eu estava sem reacção. Eles perguntaram-me o que se estava a passar, e eu expliquei que ia aos Jogos Olímpicos de Londres. Abraçaram-me aos gritos e chamaram os vizinhos para festejar”.

De volta a essa memória inesquecível, Dysa recorda o entusiamo. “Passei o dia inteiro a tentar digerir tudo o que estava a acontecer, e a perguntar-me se aquilo era real. No final do dia, fui para o telhado da minha casa e gritei: Eu vou aos Jogos Olímpicos!!!”.

A notícia surgiu a dois meses do início da competição, reconhecida como um dos eventos desportivos mais importantes do mundo. Para estar à altura do desafio, a judoca cabo-verdiana instalou-se no clube de Judo Saint Geneviève, em França, onde teria melhores condições de preparação.

“Fiquei na casa de um familiar, de onde saía às três da tarde e voltava à meia-noite. Foram treinos intensos. Nos primeiros dias, de tanta porrada que levava, terminava sem energia para voltar para casa”.

Em mês e meio, Adysangela Moniz fez uma preparação que os atletas costumam fazer em cinco anos, percurso em que o apoio paterno voltou a ser crucial.

“O meu pai ligava-me todos os dias para saber se eu estava bem. Dizia para eu aguentar e utilizar a dor como combustível para continuar, porque o caminho já tinha sido feito, só faltava a medalha no peito”.

O valor da chegada está na caminhada

Nos Jogos Olímpicos, Adysangela desfilou com a bandeira de Cabo Verde na qualidade de melhor atleta do país, um dos momentos que lhe trouxeram muito orgulho na sua caminhada.

“A experiência nos Jogos Olímpicos foi inexplicável. Eu era uma jovem que caiu de pára-quedas num grande evento mundial, e só quem esteve lá sabe o quão importante ele é para alguém que faz desporto por amor à camisola”, destaca Adysangela.

A judoca da categoria +78kg terminou a participação em Londres na segunda fase das eliminatórias, feliz com o facto de sentir que foi tratada da mesma forma que os outros atletas.

“Eu estava ao lado dos melhores do mundo. Comia ao pé de atletas como Tyson Gay, Usain Bolt ou Teddy Riner, e nunca me senti inferior a ninguém. Nos Jogos Olímpicos aprendi que somos todos iguais independentemente da cor, do país ou das condições financeiras. Somos todos grandes atletas”.

Depois dos Jogos Olímpicos de 2012 seguiram-se participações em competições como o European Open Lisbon 2015, Grand Prix Tbilisi 2016, Yaounde African Open 2018, e Odivelas European Open 2020.

A rota desportiva estava também apontada para os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, mas uma lesão alterou os planos da atleta, que pretendia carimbar no Japão a despedida da alta competição, agora em aberto.

Criar caminhos para novas oportunidades

Além do orgulho de representar Cabo Verde, a judoca de 34 anos integra, há três anos, o Plantel Olímpico e Sénior da equipa de Judo do Sport Lisboa e Benfica.

A atleta concilia a vida desportiva com o trabalho administrativo na Associação Luso Caboverdeana de Sintra e, no futuro, pretende juntar a gestão ao desporto, actuando como empresária desportiva.

“Gostava de criar um Centro de Alto Rendimento para a modalidade de judo, em Cabo Verde, e retribuir tudo o que o desporto me deu, ajudando os jovens de Cabo Verde a seguirem as suas carreiras desportivas com menos dificuldades”. Até ao pódio.