A servidora que nos desafia a tirar as máscaras, e nos guia por lugares vividos

É psicóloga, mas não faz diagnósticos. Tem obra publicada, mas dispensa a “praxe” das referências bibliográficas. Finca as raízes em Moçambique, mas as suas ligações não conhecem fronteiras. Agora em Portugal, mas com planos de voar para o Brasil, Lígia de Noronha desafia convenções, em sintonia com as suas intuições. O Afrolink foi conhecê-la, e descobriu um novo livro e um destino sem máscaras. Onde todos podemos respirar melhor.

por Paula Cardoso

Assim de repente, conta perto de 50 moradas. Entre Moçambique, Angola, Portugal, EUA, Índia, Brasil – para citar os países cardeais de uma viagem iniciada há 53 anos –, Lígia de Noronha nasceu, cresceu, perdeu-se, reencontrou-se e renasceu servidora.

A jornada de vida, iniciada em Maputo, assenta agora domicílio em Lisboa, mas já tem planos de voo em direcção a Belo Horizonte.

“Sinto que ainda estou em boa idade de fazer uma aventura”, anima-se a psicóloga, sem ponta de resistência à mudança. “Desde criança que tenho uma grande capacidade de adaptação”.

Primeiro em Angola, para onde a família foi viver quando tinha apenas quatro anos, depois em Portugal, destino de permanência a partir dos 10 anos, a seguir em Moçambique, onde abriu o próprio centro de Psicologia, Lígia calibra a bagagem dessas e de outras viagens com a escrita.

“Eu morei em muitos sítios, mesmo dentro de cada país. Em Portugal, por exemplo, estive em Sintra, Cascais, Lisboa, Algarve, e até vivi na Ilha de São Miguel, nos Açores”, aponta, enquanto revisita destinos. “Vêm-me à cabeça, logo assim, uns 40 e tal, 50 lugares”.

Autobiografia não explícita em curso

O mapeamento residencial ganha expressão literária em “Lugares Vividos”, livro que a também escritora começou a escrever em jeito de memorial resignificado.

“É uma autobiografia não explícita, se quisermos, em que, com o conhecimento e sabedoria que tenho hoje, vou pegar no que aconteceu nesses lugares e associar a novos conceitos, à minha nova forma de ver as coisas”.

O processo de ‘digestão’ do passado, destaca Lígia, aprofunda a consciência de que nada do que vivenciou foi por acaso. Pelo contrário, tudo se conjugou para o próprio crescimento.

“Eu sou o meu maior estudo de caso há muitos anos”, sublinha a moçambicana, iniciada no seu processo de despertar da consciência há mais de três décadas, a partir de uma viagem aos EUA.

“Fui a Washington dar apoio a uma pessoa amiga, que, ao perceber a minha grande vontade de descobrir que rumo seguir, me ofereceu como prenda de aniversário uma consulta com uma astróloga. Acabou por ser um dos acontecimentos mais fortes da minha vida”.

Na altura com 22 anos, a trabalhar na Traducta e já com duas tentativas frustradas de acesso à Faculdade de Letras – “Tinha-me candidatado a Línguas e Literaturas Modernas” –, Lígia recorda que trouxe desse encontro uma nova consciência.

“A astróloga disse-me: ´Tu és talhada para lidar com as emoções das pessoas por causa da tua intuição’. Eu nem sequer fazia ideia do que era a intuição, mas a verdade é que sempre adorei a comunicação sobre emoções, e as pessoas vinham ter comigo naturalmente e me confidenciavam coisas. Então percebi que, ao longo da minha vida, fui manifestando algumas das características ideais de um psicólogo”.

O poder da intuição

A tomada de consciência consolidou-se na companhia do livro “Vivendo na Luz”, da autora Shakti Gawain, especialmente marcante por trazer um capítulo inteiramente dedicado à intuição.

“Volto para Portugal já com esse insight maravilhoso, de que sou uma pessoa intuitiva e de que estou talhada para a Psicologia. Isso mudou-me completamente, e, hoje em dia, posso dizer que 98% ou 99% das decisões que tomo são baseadas na minha intuição.”

A transformação concretizou-se numa nova orientação para os estudos universitários. Em vez de Línguas e Literaturas Modernas, Lígia apontou baterias para a Psicologia, mesmo sabendo que não tinha as provas necessárias para avançar com a candidatura.

“Não tinha tido Filosofia no Secundário, não tinha tido Biologia e não tinha tido Psicologia, mas a minha intuição dizia-me que era por ali. Acabei por entrar na Universidade Lusófona, depois de escrever uma carta ao reitor”.

Aceite para o exame de admissão, e já após um mês de estudo intensivo e solitário em Filosofia, Lígia garantiu a ambicionada vaga.

 

A intuição não lhe tinha deixado ficar mal, e, uma vez na universidade, voltou a evidenciar o seu fulgor.

“Passados três meses, vejo uma placa na Lusófona que diz ‘Gabinete de Apoio aos Estudantes Africanos’. Pensei: ‘Bem, tenho nacionalidade portuguesa, mas nasci em Moçambique”.

Embora o espaço estivesse vocacionado apenas para acolher alunos com cidadania africana, a então caloira de Psicologia intuiu que valia a pena tentar uma aproximação.

A “injúria” de ser lésbica

“Entrei no Gabinete – lembro-me que era um coronel que estava à frente daquilo – e disse: ‘Olhe, estou aqui, tenho nacionalidade portuguesa, mas quero voltar para Moçambique. Ele respondeu: ‘Vai receber apoio nosso na mesma, porque eu sinto que está a ser sincera”.

Além de ter ficado com 75 por cento de desconto nas propinas, a ligação aos estudantes africanos abriu caminho para o regresso a Maputo.

“Defendi a minha tese em 98, e três meses depois estava a cumprir o sonho de ir servir no meu país natal”.

De volta a Moçambique, licenciada em Psicologia, com especialização em Psicologia Clínica e de Aconselhamento, Lígia começou por leccionar no então ISPU – Instituto Superior Politécnico e Universitário, entretanto rebaptizado Universidade Politécnica.

“Dava aulas de Psicologia Social e Sociologia, e cheguei a ter funções de coordenadora do curso de Psicologia”, recorda, duas décadas depois de uma interrupção forçada na carreira académica.

Despedida sob a alegação de que usou “expressões injuriosas e ofensivas da pessoa do magnífico reitor”, Lígia ainda contestou a decisão na Justiça, ganhou a causa, mas terminou afastada.

Tudo porque assumiu ser lésbica, “alto e bom som”, durante um jantar de Natal em que também estavam presentes outros reitores.

“Nessa altura, o reitor já mal me falava, estava de relações cortadas comigo, e eu queria saber o motivo. Perguntei-lhe se era por ser lésbica e ele ficou ofendidíssimo”.

O primeiro Centro de Psicologia privado de Moçambique

Um par de dias depois, a carta de despedimento abria caminho a uma nova etapa profissional.

“Deus escreve direito por linhas tortas, como se costuma dizer. Apesar de que adoro dar aulas e de achar que tenho um jeitão, não era para continuar ali”.

Fora da Academia, a psicóloga dedicou-se a fundar o primeiro Centro de Psicologia privado de Moçambique: o PsiCoEstar.

“Dois anos após a abertura, começámos a oferecer também aulas de Yoga e um curso de Reiki, numa altura em que, no país, as pessoas nem tinham ouvido falar de Yoga, quanto mais de Reiki”, lembra Lígia, que nos primeiros 15 anos de actividade conduziu o projecto sozinha.

A situação mudou em 2015, quando Andrea Serra se tornou sócia do centro, trazendo consigo a especialização em Psicologia Organizacional e uma extensa carteira de clientes empresariais.

Apesar do bom entendimento, a vinda de Lígia para Portugal e os novos planos pessoais e profissionais de Andrea ditaram o fim do PsiCoEstar.

“Começámos o processo de encerramento no ano passado, e acabámos por fechar o centro já este ano”.

Voos brasileiros e indianos

Para trás ficaram duas décadas de consultas, workshops e palestras, apenas interrompidas em dois momentos.

“Suspendi o centro durante um tempo. Fui para a Índia, e também estive um ano no Brasil, a fazer por concluir uma pós-graduação em Psicologia Transpessoal”.

A temporada brasileira, cumprida em São Paulo, encerrou sem o planeado complemento académico, mas trouxe um reforço no círculo de amizades. “Fui ao Brasil para conhecer uma das minhas melhores amigas, a Laura, que estava no mesmo curso que eu. No fundo, essa viagem devolveu-me muito a mim, serviu para profundas autoanálises, porque me sentia muito sozinha”.

Já a experiência indiana, antecessora da brasileira, ficou marcada pelo retiro “Peace of Mind”, realizado na sede da Academia Brahma Kumaris, em Mount Abu.

“Vivi 10 dias maravilhosos, e um impulso criativo dos mais fortes que já tive até hoje”, conta Lígia, recuando à “metáfora poetizada” que apresentou no final do encontro.

“Não descansei até que começasse a escrever. Lembro-me de chatear quem estava à minha volta porque queria caneta e papel”.

A vida como uma refeição de amor

Inspirada depois de ouvir uma palestra intitulada “Food for the body and the soul” (“Comida para o corpo e para a alma”), a psicóloga cozinhou “Dishes of love”, (“Pratos de amor”), servidos com doses generosas de reflexão.

“Quem cozinha para ti os pratos que mais te nutrem, satisfazem e dão força? Tu, ou outros? É verdade, Divindade, sabes de que pratos estou a falar? De entre muitos, vou apenas lembrar-te daqueles que normalmente esperamos que as outras pessoas cozinhem para nós: – auto-aprovação; – auto-respeito; – auto-aceitação; – auto-reconhecimento; – auto-valorização; – auto-admiração; – auto-atenção; – auto-afecto; – auto-cuidado; – auto-responsabilização; – auto-inspiração; – auto-estima”.

Na refeição poetizada, degustável online, a também escritora deixa para o fim o ingrediente principal: “Tu és a pessoa responsável pela tua própria nutrição, e, por isso, procura as melhores receitas que há”.

A busca começa num despertar de consciência: “A tua cozinha está bem limpa, ou ainda existe nela alguma culpa do passado que agora se transformou num ressentimento malcheiroso?”.

Especialista em facilitar essa viagem interior, a psicóloga nota, contudo, que activar a consciência não basta. “É preciso acção para acedermos a conteúdos emocionais que estão recalcados e dos quais fugimos. Autoconhecimento profundo requer auto-observação constante, e há aí um ponto fundamental que é a autoaceitação. Temos de aceitar o que identificamos, senão passamos a vida a projectar nos outros aquilo que precisamos de mudar em nós”.

Ver, reconhecer e fazer descer as máscaras

O mergulho interior, nota Lígia, permite reconhecer que apenas podemos ser vítimas de nós próprios.

“Ninguém faz nada para me infligir dor, ou para me prejudicar, ou porque não gosta de mim. Cada alminha tem os seus problemas, as suas defesas e as suas fugas”, explica a psicóloga, sublinhando que compete a cada um de nós perceber porque é que, em determinadas circunstâncias, o comportamento dos outros mexe tanto connosco.

“Quando tiramos as máscaras, tiramos os pedregulhos, limpamos o terreno interno, e vemos que as sementes estão lá à espera de ser regadas”.

O apelo a um desmascarar ganha um simbolismo especial em tempos de pandemia.

 

“Neste momento vemo-nos obrigados a usar uma máscara. Mas a maior parte de nós já usava. A diferença, se quisermos, é que agora essa máscara também é física, e antes era exclusivamente humana”.

Entre a máscara-material e a máscara-comportamental, encontra-se o evento “Masks Out: Máscaras humanas (defesas) & Máscaras artísticas (belezas)”, ao mesmo tempo uma palestra vivencial e uma exposição.

O conceito, inaugurado em 2019, combina Psicologia e Arte, e, ao mesmo tempo, promove o trabalho de criadores moçambicanos. Como Ivan Nhapango, cujas máscaras feitas com metal reciclado inspiraram Lígia a desenvolver o “Masks Out”.

A palestra-exposição apresenta-se no próximo dia 20 de Novembro, às 19h, no bar Lisboa Vadia, para um máximo de 10 pessoas, e mediante inscrição.

Psicologia sem diagnósticos

Até lá, Lígia mantém a rotina de consultas de Psicologia livre de diagnósticos.

“Nunca fiz um diagnóstico na minha vida, porque não me identifico com a abordagem clínica patologizante”, explica.

Da mesma forma que dispensa as convenções da prática da Psicologia, e mantém uma média de não mais do que quatro sessões por paciente – “As pessoas, seguindo as orientações, que são muito práticas e directas, mudam estruturalmente e irreversivelmente –, a especialista também descarta as normas do mundo editorial.

“O meu primeiro livro não tem bibliografia, o que para uma obra na área da psicologia causa estranheza”, admite, sem contudo prescindir da liberdade de fazer diferente.

“Escrevi e escrevo com base na minha experiência clínica e pessoal”, nota, de volta às páginas de “Desenvolvimento pessoal em casa e no trabalho”.

“Tudo o que experiencio, sei, sinto e digo sobre o funcionamento humano (individual e grupal) vem na obra”, lê-se na morada online de Lígia, onde se apresenta como psicóloga especialista no despertar da consciência.

No cartão-de-visita, porém, a diferenciação da sua prática sobressai.  “Não está escrito psicóloga, está escrito servidora porque é assim que me identifico. Sou alguém que lida com conteúdos internos esquecidos por parte das pessoas. Eu lembro-as daquilo que se esqueceram que sabiam. No fundo, invoco aquilo que todos nós sabemos, e é exactamente por isso que faz logo sentido”. Sem máscaras.

Para saber mais sobre Lígia de Noronha pode visitar o seu site, através do qual também pode marcar consultas