Boba Li Ke Terra: encontro de muita gente, num festival de trocas espontâneas

Com o desconfinamento, o Casal da Boba, na Amadora, caminha a pequenos passos para o regresso à realização de eventos culturais e reestruturação dos restaurantes e cafés da zona, que sofreram com a pandemia. O Afrolink acompanhou a retoma das actividades que celebram as identidades e o espírito comunitário vivido diariamente no bairro.

por Filipa Bossuet

É uma da tarde e o calor humano faz-se sentir, com o devido distanciamento social, nas pracetas que separam os prédios e nas esplanadas dos cafés, quiosques e restaurantes do Casal da Boba, depois de meses de recolhimento devido à pandemia.

O som dos diálogos, as gargalhadas e a música ritmada ganham dimensão no espaço e vibram no olhar de José Baessa, mais conhecido por Sinho, o vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, que nos recebe com um sorriso à porta, e apresenta os preparativos para o Boba Li Ke Terra. O festival acontece desde 2011 no Casal da Boba, na Amadora, com o intuito de celebrar a comunidade e a independência de Cabo Verde, mas, devido à pandemia, não se realizou em 2020.

Este ano, Sinho não quis que a data voltasse a passar em branco, e, mesmo sabendo que não seria possível organizar o evento nos moldes habituais, devido às restrições causadas pela Covid-19, decidiu avançar com um plano alternativo.

Festival de recuperação e celebração

Nasceu assim a transformação do Boba Boba Li Ke num evento focado na recuperação dos negócios mais castigados durante a pandemia, e, fiel à sua génese, orientado para fortalecer o espírito de comunidade, que prevalece diariamente no Casal da Boba.

No centro das actividades, acompanhadas de perto pelo Afrolink, surge a celebração da Independência de Cabo Verde, que se assinala a 5 de Julho.

O programa começa cedo, conta o líder comunitário, explicando que os moradores saem à rua às 8h para comerem juntos o cuscuz da sua mãe, Ana Baessa.

À entrada da associação, ponto de encontro com Sinho, estão exibidas as impressões em grande escala da exposição “Sons, Personagens e Sentimentos”, cedida pelo Centro Cultural de Cabo Verde.

A mostra incide sobre o género musical morna, reconhecido como Património Cultural Imaterial da Humanidade, e aqui representado pelas biografias de uma série de artistas, como Adalberto Silva Betú, Celina Pereira, Cesária Évora, Tututa ou Ildo Lobo.

Maka de arte com 12 bandeiras

Sinho refere que a iniciativa tem o propósito de dar a conhecer o legado do povo cabo-verdiano às crianças e jovens do bairro, e destaca que todos os moradores têm parado para ler sobre a herança que tanto orgulho traz à comunidade.

A conversa prossegue já dentro da Cavaleiros de São Brás, onde estão espalhadas 12 bandeiras de tecido cru no chão, que o artista Francisco Vidal vai pintando, à medida que observa atentamente as expressões de quem convida para um retrato.

Francisco Vidal está acompanhado pela comunicadora de arte, Namalimba Coelho, com quem forma o Maka Lisboa, apresentado como um projecto em constante processo de construção e desconstrução, que junta o desenho e a palavra como ferramenta poética para dar voz e visibilidade a vivências e experiências dos espaços que percorre.

Há um ano e meio que o Maka Lisboa segue o trabalho desenvolvido pela Associação Cavaleiros de São Brás no Casal da Boba, onde o elo de ligação se concretiza a partir da conversa visual, social e poética que Francisco Vidal eterniza nas bandeiras que traz para o bairro.

“Nós gostamos do espaço político que as bandeiras ocupam. Portanto, foram a melhor escolha para este local, porque falam sobre identidade. As bandeiras têm sempre símbolos e sinais, são uma conversa, são retratos de pessoas que vimos hoje aqui e que nos abriram muitas histórias”, nota o artista Francisco Vidal, ladeado por Namalimba Coelho.

O artista e a comunicadora de arte acrescentam que embora a palavra Maka, originária da língua banta kimbundu, se tenha popularizado como sinónimo de problema, no âmbito do seu projecto ela deve ser lida com outro dos seus significados: conversa.

Uma Maka que na óptica de Francisco Vidal e Namalimba também pode significar museu, movimento, manifesto ou até música, e que se exporta assim para o Casal da Boba, transformando-se em #MakaLisboaBoba, um projecto de todos.

A assinatura colectiva percebe-se nas entradas e saídas do espaço, onde o foco está nos movimentos das pinceladas de cores vibrantes de Francisco Vidal, aplicadas ao som da voz de Ilda Vaz, mais conhecida por Dona Ilda e residente na Boba há mais de 20 anos.

Cantar e batukar a história

A vocalista e compositora das batukadeiras “Bandeirinhas da Boba” canta a sua história e do povo negro escravizado de São Tomé, sem esquecer a cultura de Cabo Verde, o país onde nasceu, presente na forma como se expresssa ao som da chabeta, o instrumento utilizado pelas batukadeiras.

“Aprendi a batukar com os meus pais e canto desde pequena. Só a cantar é que me sinto viva, por isso canto todos os dias para que ouçam a minha história”, diz Dona Ilda, enquanto se prepara para mais uma actuação.

Do lado da assistência, encontramos Simone Moreno, dona do negócio de uma das bancas espalhadas pelo espaço: a Baduuart.

A empreendedora desenvolveu a marca em 2020, durante a pandemia, e hoje produz peças de decoração em macramé, técnica de tecelagem manual, oferta de artigos a que junta porta-chaves e malas, em linha de algodão.

Para além da Baduuart, que promove no Instagram, Simone criou outra linha de negócio: a Badudoces, que, como o nome indica, tem como especialização a venda de doces, apresentados em caixinhas cheias de brigadeiros de chocolate e macarons de vários sabores.

“Aprendi a fazer estas peças em macramé no YouTube, e estou a tirar um curso de cozinha porque pretendo, um dia, criar uma empresa de catering”, revela Simone, que veio da Brandoa com o irmão Adilson, um dos rostos pintados por Francisco Vidal.

“Aqui no bairro as coisas são mesmo assim, à vontade. As pessoas vão aparecendo, e cria-se um ambiente”, assinala Sinho, mostrando como a movimentação dentro da associação reflete a essência do bairro. Por aqui, diz o líder comunitário, a trocas são “espontâneas”, e as ligações materializadas numa mistura de cores, ritmos e experiências.

Os sabores da cultura que introduzem a Boba

O ambiente a que o dirigente associativo se refere veio das Fontainhas, o antigo bairro situado às portas de Benfica, onde surgiu o festival Boba Li Ke Terra, e de onde grande parte dos moradores da Boba saiu.

Elisabete Baessa, irmã de Sinho, é uma das vendedoras ambulantes da Boba e ex-moradora das Fontainhas, que se recorda das vivências no bairro com muita saudade.

“Os tempos nas Fontainhas eram muito bons, nem tenho palavras para expressar o quão incríveis eram”, expõe Elisabete, enquanto vende os donuts com açúcar e canela que aprendeu a fazer com a mãe, Ana Baessa.

Tal como Elisabete, Maria Varela viveu nas Fontainhas e partilha o gosto pela cozinha. Maria, que também foi realojada no Casal da Boba, refere que a convivência no bairro é menor, mas acrescenta que “o que sobrou é igual ao que havia nas Fontainhas”. Enquanto revisita o passado e compara com o presente, abre a caixa que carrega ao colo, com vista para os 50 pastéis de milho, que faz diariamente para venda nas ruas do bairro.

Há 20 anos que as duas vendedoras moram no Casal da Boba, e, desde 2004, passaram a seguir de perto a Associação Cavaleiros de São Brás. Ambas referem a importância das actividades desenvolvidas, como uma forma de “manter a identidade e não esquecer a cultura”, que, na Amadora, tem uma mistura de cabo-verdiana, angolana, guineense e santomense.

Da rua para o interior do restaurante café Bons Amigos, de Martina Dias, cruzamo-nos com um menu recheado de pratos tradicionais de Cabo Verde, como cachupa, feijoada, xerém, feijão congo e cuscuz.

Para além de ser dona do estabelecimento, Martina Dias assume a confecção dos pratos, servidos a Sinho, Simone, Namalimba, Francisco Vidal e outros clientes que vão entrando e se deliciando.

“Toda a comida que faço é com muito gosto, e pretendo continuar a cozinhar os pratos da minha terra, porque é uma forma de celebrar a minha existência”.

Já depois do almoço, todos se concentram no largo principal do bairro, ao pé do Quiosque da Sandra, que, muito atarefada, tenta atender a todos os pedidos de caipirinha, grogue, gelados artesanais de fruta e cuscuz de morango.

As bandeiras com retratos de Sinho, Adilson e Dona Ilda encontram-se penduradas num único fio preso sobre o tronco das árvores que compõem a paisagem da Boba, e cujas folhas se movimentam num som que acompanha o vento.

Na parede com vista para o largo, são expostas fotografias em A4 dos moradores, registos que espelham os sorrisos e afectos que ligam as pessoas do bairro.

As bancas são transferidas para o centro da celebração, mais pessoas chegam e aproximam-se.

A Simone juntam-se as marcas Kapulana San, Afrobloods e Bazofo & Dentuzona.

 África com Japão

Com a ideia inicial de juntar África ao Japão, desde 2015 que Elda Joaquim criou a Kapulana San, uma marca de vestuário e acessórios, com um estilo próprio de costura.

O negócio ficou conhecido na Boba quando um dos moradores comprou uma t-shirt bordada com o desenho do continente africano, criando assim, uma proximidade com a comunidade.

A criadora, que mora no bairro há oito anos, une as técnicas japonesas Sashiko e Boro, onde são bordados retalhos sobre uma base de tecido, evitando qualquer desperdício.

“A base da marca é ser o mais zero desperdício possível. Compro tecidos, mas também trabalho com materiais vintage, ou que sejam de outras peças que desmancho”, explica Elda, à medida que mostra os seus kimonos, colares e malas eco-frendly.

Para a costureira, eventos em comunidade, como o Boba Li Ke Terra, são cruciais para empoderar jovens a criarem a sua própria marca e negócio.

“Estes momentos recordam-nos do quão bom é o orgulho de sermos capazes de fazer coisas com as nossas próprias mãos”, conclui.

“A intenção é que quando um sobe, outras pessoas subam também”

Ao contrário de Elda, Vítor Sanches não mora no bairro, mas é um velho amigo da Associação Cavaleiros de São Brás. Conhece-a pelo trabalho característico nas margens, que também realiza no empoderamento da comunidade da Cova da Moura, onde nasceu, cresceu e vive.

É também aí que desenvolve a marca Bazofo, popularizada pela venda de t-shirts, estampadas com recurso a serigrafia. Vítor também se dedica à comercialização de livros de autores negros, como Amílcar Cabral, Alice Walker, Angela Davis, Bell Hooks ou Djaimilia Pereira Almeida.

O serigrafista acrescenta à banca montada para o Boba Li Ke Terra, um charriot com as t-shirts em homenagem a Bruno Candé Marques, cujas vendas revertem para a família do falecido.

Na Cova da Moura ou na Boba, seja qual for o circuito que faz, Vítor pretende transmitir o apoio a comunidade. O criador da Bazofo defende o investimento em todas as correntes de união, e descarta a competitividade entre as marcas.

“A intenção é que quando um sobe, outras pessoas subam também” afirma, ao contar a colaboração que acabou de fazer com Carlos Dias, um dos criadores da marca Afrobloods.

“Por não ter a oportunidade de ter as minhas peças de roupa à venda noutras lojas, crio a lógica de aceitar outras marcas na minha, e foi isso que fiz com a Afrobloods”, adiantas Vítor, peremptório: “Para nós, negros, é muito mais difícil obter espaços”.

Do outro lado deste negócio, a Afrobloods é a marca que conta a história do criador Carlos Dias e de muitos cabo-verdianos, através do continente africano. A Pé di pólon, a maior árvore de Cabo Verde, ou o código postal 8125, referente ao bairro onde mora, em Quarteira, surgem estampados nas t-shirts e nos chapéus expostos no festival.

“É a primeira vez que venho ao Casal da Boba e sinto-me em casa, como quando estou em Cabo Verde. Sinto-me confortável e espero voltar mais vezes”, expressa o criador da Afrobloods, marca existente há ano e meio.

Terra de muita gente, de toda a gente

Pelas ruas, a energia torna-se uníssona. As batukadeiras Bandeirinhas da Boba sentam-se no círculo de cadeiras e cerca de 25 pessoas  alinham-se no chão, outras ficam em pé, para sentir, ouvir e dançar ao som das histórias de Dona Ilda e das sete mulheres que a acompanham no batuko.

A apresentação dura mais de 15 minutos e envolve toda a gente, de fora e de dentro, formando uma comunidade.

O ambiente flui e a música mantém-se mesmo quando já se começam a arrumar as bancas. Sinho reitera que a Boba tem o espírito das Fontainhas.

“Este espírito deu-nos muito, e sabemos que é algo positivo. Por isso, resgatamos esse tempo para trazer para a Boba e servir à comunidade, como serviu outrora para as Fontainhas”, resumeo líder comunitário, antes de encerrar a visita-guiada.

“O Boba Li Ke Terra, terra de muita gente, é uma celebração que se estende a celebrações diárias, sempre no sentido de empoderar a comunidade”, conclui Sinho, grato pelas trocas espontâneas.