“Cachupa e uma lei do amor”, pelas palavras do escritor Eduardo Quive

No último domingo, 28, o Afrolink e O Lado Negro da Força assinalaram dois anos de vida num memorável “Cachupão”, onde estiveram cerca de 100 pessoas. O momento contou com a presença do escritor moçambicano Eduardo Quive, que partilha a experiência no texto “Cachupa e uma lei do amor”, originalmente publicado na revista digital “Literatas”.  O Afrolink republica-o na íntegra.

Eduardo Quive foi um dos vencedores do programa de intercâmbio literário Lisboa-Maputo 2022, do Instituto Camões. Jornalista, escritor e produtor cultural com experiência em imprensa, televisão e multimédia, actualmente é editor da revista digital “Literatas”, e colabora com imprensa moçambicana e estrangeira, escrevendo sobre artes, cultura e inovação. Como escritor é autor de um livro de poesia, tem textos em prosa e poesia publicados em antologias e é coautor de um livro de entrevistas. Tem produzido e programado eventos literários. Mais informações aqui.

Eduardo Quive

Cláudia Simões, cozinheira do “Cachupão”

Roda de conversa moderada por Mafalda Fernandes (centro), com psicológos Bruno Vaz, Edna Tavares, Miriam Pires dos Santos e Shenia Karlsson

Músico Kizua Gourgel

Colectivo O Lado Negro da Força

Texto de Eduardo Quive

Fotos de Bruno Miguel

Todas as palavras já foram ditas sobre o amor. Tudo já foi dito, incluindo esta frase. Mas o amor como direito e dever, vou ainda ouvir dizer. Vou ouvir e ver que se diga e se faça, em público, com música, megafone, comida e bebida.

O amor como uma questão de sobrevivência, como o direito à vida, o direito à existência. O amor como saúde e o desamor como doença fatal e degradante. O amor como cidadania e o desamor como o desrespeito e desconsideração. O amor que não é nada romântico. Que é sim uma experiência do corpo, mas é uma condição social. Nada dramático, antes e necessariamente prático. O amor como lei que há de salvar, curar e libertar. Mas não como bem adquirido, oferecido, largado no caixote de lixo para que alguém o apanhe, aqueles que vivem no lado negro da lua, no lado negro dos mercados, no lado negro das noites, no lado negro da cor e da vida.

O amor como sustentabilidade. Como um direito básico e legislado, até. Como um decreto, escrito a tinta indelével. Porque não basta ao coração a capacidade de amar. Essa oportunidade já lhe foi dada e ele fracassou, sempre foi selectivo, abusivo, traiçoeiro, manipulador, violento, opressor e irracional, quase extinguindo o próprio amor.

Haverá na humanidade espaço para tão exigente tarefa? O mundo é grande, disse Drummond, e o amor seria da dimensão desse mundo. Deixá-lo viver nos corações seria assumir que o mundo cabe num só corpo. E não, o corpo todo não suporta o peso do mundo. A capacidade de partilhar ao invés de dar. Não resistimos à tentação de reter, de possuir, de apropriar. Seguro mesmo é ter um seguro de vida, um título de propriedade, um atestado de alguma coisa. É o “eu” às vezes pluralizado, estrategicamente.

Um amor que ninguém estende a mão para ter e ninguém anda à procura. Um amor que não seja carência nem excesso. Que seja equilíbrio.

Sim, amamos quando cozinhamos e damos de comer e de beber; ama a mulher que dá o peito a um bebé, amam os que convivem com o outro, os que abraçam, beijam, vê a nudez do outro e a desejam; amam os que curam, dão seu sangue para a vida do outro; mas esse é o amor dado, dependente, condicional e refém dos desejos e da boa vontade, da disponibilidade.

O amor que vale é o que não se dá. É o que é. É o que deve ser. Um direito natural. As paixões que sejam temperamentais, temporais. Mas o amor, não, que seja essência. E isso não é romântico, poético ou subjectivo.

Pensa-se o amor depois de uma cachupa preparada por uma mulher aplaudida as vezes todas em que seu nome foi dito, glorificado, para bem dizer. É o Cachupão nos becos de Alfama. Enquanto ali na esquina tem o Museu do Fado, um grupo de negros, mulatos e brancos, escutam atentos, ora rompendo em aplausos de aceitação, a um homem e quatro mulheres que fazem pensar o amor. Cinco psicólogos foram colocados em frente para falarem das dores invisíveis, que transcendem a alma, mas que afectam o estado do espírito e todo o tecido social. As propostas são de uma conjugação difícil de assimilar. O que é amor? Essa foi pergunta de base. Antes, o que não é o amor, foram todos unânimes na resposta que fica como uma pergunta. O que não é o amor?

O amor, as dores da alma e do corpo. O amor que não é uma questão de sentimento. Da disponibilidade para sentir e demostrar sentimentos, emoções e acções. É uma questão do ser. E fico a pensar na frase dita por alguém de quem não nos lembramos, mas que Miriam, digo, Miriam Pires dos Santos e para que conste nos anais de quem tem memória, o nome tem de ser dito completo, como exige a própria: os peixes nadam juntos, não se discriminam. A discriminação está na água. As pessoas não são racistas, os sistemas, o mundo é que é racista. E completou Shenia Karlsson, como quem determina, que o mundo precisa de leis para o amor, que permitam a não coisificação do outro, a desvalorização da dor do outro, da fome do outro, da guerra do outro. E, não, não se trata de solidariedade ou de um gesto humanitário, dos poucos sensíveis, bondosos, que dão esmola aos miseráveis do mundo. É uma questão de princípios, de leis, que incluem a criminalização do desamor.

Antes que toda a cachupa se desfizesse no meu estômago, levantei-me e despedi da Sílvia. Enquanto caminhava pelas ruas estreitas, cheias de pessoas, uma multidão em romaria pelas paredes que contam várias histórias, pelas tascas apertadas de onde soltam-se gargalhadas e uma trilha sonora de talheres, percorro os rostos, como se a lei do amor se tivesse decretado. E, penso, mergulhado na metamorfose das aparências, quem entre nós, diante da lei, será o inocente e o criminoso. Quem investigará os crimes cometidos, quem acusará, quem defenderá, quem será o juiz e carcereiro? E o que será o amor?

28.08.22, Lisboa