Carta aos meus amigos brasileiros: não é a Anitta, é uma outra coisa

A Anitta é favela. A Anitta é negritude. A Anitta é LGBT. A Anitta é uma data de coisas que nos anos 80 e 90, por cá, só tinham lugar em grandes palcos na hora de os limpar ou de os desmontar. Ver que agora é a única cabeça de cartaz capaz de esgotar o maior festival do mundo faz muita, mesmo muita confusão a muita gente. Ainda bem.

por Pedro Filipe*

Percebi durante esta semana que se chocaram e/ou entristeceram com as reações e o ódio que foram vendo e lendo, aqui e ali, ao concerto da Anitta no Rock in Rio. Infelizmente, não há em nada disto novidade, e talvez esta história que vos vou contar vos ajude a perceber tanta comoção com algo tão supérfluo. Em primeiro lugar, tenho que ser claro: não é a Anitta que motiva todo este sentimento, isto não tem absolutamente nada que ver com música. É uma outra coisa, mas já lá vamos.

No início dos anos 2000 havia dois fenómenos musicais, um em crescendo e outro já bem consolidado por cá, que geravam, mais ou menos, as mesmas reações que agora se fizeram sentir. Falo da kizomba e do hip-hop, respectivamente. Quando entrei na universidade uma pergunta que era muito vulgar fazerem-me era:

– Gostas de kizomba?

Eu eu não gostava. Nunca fui habituado a ouvir, e até hoje a sonoridade não me diz absolutamente nada. Mas desde cedo percebi que aquela pergunta nada tinha que ver com kizomba, e, por isso, não houve uma só vez que não tenha respondido

– Adoro!!!

Era uma pergunta para testar o meu “nível cultural” no novo meio onde me encontrava, sendo negro e vindo da Margem Sul. A kizomba era “música de pretos”, tal como o hip-hop, e era por isto que era mal recebida. Por isto, e porque o seu sucesso estava em crescendo. Quando se trata de música periférica a cidade não se limita a distinguir entre música que gosta e música que não gosta. Rotula quem gosta de inferior culturalmente. É um eufemismo. Este símbolos são muito importantes para se passar uma mensagem quando não se pode dizer essa mensagem de forma expressa. Na América do Reagan cunhou-se a expressão “Guerra às Drogas” para se targetizar uma comunidade específica e a encarcerar em massa. Assim, quando se falava de “Guerra às drogas” todos sabiam o que se queria dizer. Os códigos são imprescindíveis nos dias de hoje.

A irritação generalizada que experienciaram vem da fragilidade, do medo do novo, e sobretudo, da ultrapassagem. Cresceu comigo toda uma geração, a mesma que hoje inunda as redes sociais a dizer mal da Anitta, que via o género musical com o qual cresceu, o rock, ser ultrapassado enquanto género musical mais ouvido no mundo pelo hip-hop. É uma espécie de teoria da substituição racial… mas com música. As raízes e culturas de quem fazia e quem ouvia rock e hip-hop, não podiam ser mais diferentes, tal como a percepção do mundo perante estes. O Snoop Dogg será sempre um drogado, mas o Keith Richards é uma lenda por ter snifado até as cinzas do pai! Os critérios mudam.

O ataque à Anitta não é um ataque à cantora em si, se fosse a Ludmila seria igual, não há mais nem menos qualidade na música dela do que em tantas outras que se consomem por cá, esta geração cresceu a cantar músicas latinas todos os Verões (do Asereje à La Cabra), quase todas com uma componente sexual bastante acentuada, e nem é preciso ir tão longe, a música popular portuguesa, vulgo pimba, cantada a plenos pulmões em todas as festas dos Santos Populares, vive de trocadilhos e piadas do mesmo género e ninguém vê nisso algum mal. O que os irrita é que o Rock in Rio já não tenha só rock, aliás há N piadas com isso. Curiosamente, que já não seja no Rio não faz ninguém levantar uma sobrancelha.

A Anitta é favela. A Anitta é negritude. A Anitta é LGBT. A Anitta é uma data de coisas que nos anos 80 e 90, por cá, só tinham lugar em grandes palcos na hora de os limpar ou de os desmontar. Ver que agora é a única cabeça de cartaz capaz de esgotar o maior festival do mundo faz muita, mesmo muita confusão a muita gente. Ainda bem.

Querem boas notícias? Eles acabam por se habituar. Voltemos à kizomba. Há pouco mais de uma década uma grande produtora musical percebeu esta teoria da substituição, e em vez de ficar quieta e a chorar a glória antes perdida, antecipou o futuro. Pegou num bom rapaz, bonito, e com uma história igualmente boa e fez dele bandeira de todo um género. Pagou até que as suas músicas passassem em loop em todas as playlists das maiores rádios do país. Passou tanto que o desconforto virou habituação e a habituação se tornou gosto. Em menos de um fósforo havia mais gente nos ginásios a aprender a dançar kizomba que a fazer exercício. Nos charts de discos vendidos e concertos mais lotados agora ninguém lhe tocava. Curioso que nessa altura, os mesmos que antes me olhavam de lado por gostar de kizomba, agora me perguntavam

– Tu sabes dançar kizomba?

E eu, que por acaso não sabia mesmo, pelo menos bem, respondia

– Não!!!

Mas teria respondido o mesmo se o soubesse, porque não queria validar quem me perguntava. Invariavelmente recebia considerações sobre o tipo de “preto” que era por não saber dançar. Mas o fundamental aqui é, habituaram-se. O futuro vem e há pouco que os velhos do Restelo possam fazer quanto a isso sem ser barafustar. Por maior que seja, nenhum dinossauro pode fazer nada contra o meteorito da mudança. Velhos no Restelo não têm lugar no Parque da Belavista. Está tudo certo.

Por isso, da próxima vez que alguém vos tentar incomodar porque gostam de algo que estes consideram uma afronta ao velho e arcaico património nacional, peguem em algo tipicamente português, sugiro “um das caldas” e deem-lhes o melhor conselho que a Anitta lhes daria

– Senta, senta, senta, sentaaaaaaaa.

 

*CEO e consultor de comunicação na MI6, co-host d’ O Lado Negro da Força