Com a curadoria de Neuza Faria,
os museus vão dar o que brincar


Trocou o Direito pela Curadoria, mudança que a fez voar de Portugal para Inglaterra. A Educação tornou-se o seu território de criação artística, profissionalmente iniciado em Portugal, na Fundação Calouste Gulbenkian e, entretanto, alargado a experiências no Japão e na Suécia. De novo em Lisboa, cidade de nascimento, Neuza Faria, de 37 anos, quer pôr-nos a brincar dentro de museus, com uma proposta de intervenção ainda sem expressão em Portugal: a Curadoria Educativa. Fomos conhecê-la.

por Paula Cardoso

Entrou no Museu Nacional de Arqueologia como futura juíza, saiu na pele de aspirante a curadora e, entre um destino e outro, bastou-lhe uma visita-guiada.

“A minha irmã estava a estagiar lá, e como sempre gostei imenso de estar em museus, um dia fui ter com ela. A determinada altura, quando ela me mostrava o espaço, disse: ‘Estás a ver aquela pessoa ali? Ela é a curadora da exposição’”.

Era a primeira vez, em mais de duas décadas de vida, que Neuza Faria ouvia aquela palavra, mas não precisou nem de mais um segundo para celebrar o seu significado.

“Percebi ali mesmo que era exactamente aquilo que queria ser”, conta, recuando mais de 15 anos na sua história.

Veia criativa precocemente identificada

Na altura a frequentar o terceiro ano de Direito, e com planos de chegar a juíza, Neuza compreendeu que não poderia continuar a ignorar o chamamento artístico.

“Sempre desenhei muito, faço retratos da minha família e amigos desde que me conheço. Então, sempre soube que era criativa, mas não sabia o que fazer com isso em termos profissionais”.

A resposta surgiu naquela visita-guiada, com a descoberta de que se poderia dedicar a dar vida a museus, através da curadoria.

“O problema é que já tinha feito opções…como em Portugal não existia curadoria enquanto curso universitário, poderia escolher História da Arte, mas isso implicava ter de voltar para o liceu, fazer as disciplinas e depois candidatar-me outra vez à universidade. Na minha cabeça isso era uma derrota, por isso fui para Londres”.

O rumo britânico tornou-se uma realidade novamente a partir da experiência da irmã, que, entretanto, tinha embarcado para Terras de Sua Majestade.

“Ela estava a fazer mestrado em Londres, e explicou-me que o sistema era completamente diferente. Disse-me: ‘Aqui se gostarem do teu perfil e acharem que contribuis para o programa deles, entras’. E por acaso fui aceite em todas as faculdades para as quais me candidatei, mas escolhi a que tinha mesmo o curso de curadoria”.

O Direito como validação externa

A opção recaiu sobre a Universidade de Artes de Londres, onde Neuza se formou depois de reconhecer que a permanência no curso de Direito estava a mexer com a sua saúde mental.

Screenshot do documentário do projecto interactivo “An Elegy to the Medium of Film”, dos artistas suecos Lundhal & Seitl. “Eu colaborei como produtora e performer, esse aparato que tenho comigo (visão nocturna, microfone etc) é para interagir com o visitante no escuro e silêncio, através de uma coreografia e diálogo”.

Crédito: coprodução NXSTP, Weld, Accelerator Stockholm.

Nos estúdios de fotografia da Universidade de Artes de Londres, início do percurso como curadora.

Neuza, na exposição ‘Woven Winds’ da artista Anna Boghiguian, aquando do trabalho na Index – Fundação de Arte Contemporânea da Suécia. “Nas paredes por trás de mim estão textos, escritos pela artista, sobre a indústria do algodão em que ‘bens e pessoas circulam globalmente, numa narrativa complexa de poder, lutas pela igualdade e migração’”.

“Não me sentia bem naquele ambiente tão político, e sem nenhum input criativo. Decidi sair, e tive muita sorte porque os meus pais pagaram a minha educação”, nota, sublinhando a importância do suporte familiar desde as primeiras decisões profissionais.

“Em casa, sempre tivemos liberdade de escolha. A única coisa que os nossos pais nos disseram é que, como eles não foram para a faculdade, teriam muito orgulho em que os filhos fossem”.

Segunda filha numa linhagem de três – encerrada com um rapaz –, Neuza recorda que o incentivo aos estudos esteve sempre presente na educação, mas livre de pressões para estudar isto ou aquilo.

“Eu é que senti necessidade de ir para Direito, porque percebi, muito cedo, que tinha de me defender, como se tivesse de me justificar por causa da minha cor. Então, na minha cabeça, escolher uma profissão de estatuto, como a de juíza, permitia-me provar o meu valor. No fundo, estava a dizer: Esperem, já vos vou mostrar”.

Consciência infantil das desigualdades raciais

Desde a creche confrontada com desigualdades e discriminações raciais, a curadora explica que a sua arma sempre foi a excelência do desempenho escolar.

“Devia ter uns quatro ou cinco anos, quando uma criança disse que eu era preta. Respondi que não poderia ser preta porque o meu pai é branco, mas isso não era verdade. Os meus pais são os dois africanos, de Angola, apenas têm cores diferentes: a minha mãe é mais escura e o meu pai muito claro, só que eu, com aquela idade, não tinha como perceber essas questões”.

Talvez a história, vivida na freguesia de Alcabideche, ficasse irremediavelmente arquivada no baú da inocência infantil, não fosse a atitude prejudicial das educadoras. “Aquilo para elas tornou-se uma piada, mas a mim doeu ter de me começar a defender tão cedo”.

A necessidade de uma couraça protectora saiu reforçada com a entrada para a escola primária, onde o peso das variações cromáticas se acentuou.

“Um dia, a minha professora perguntou-me porque é que a minha mãe não me fazia uma tranças e colocava umas missangas. Lembro-me que gostava muito da minha professora, e sei que ela não teve intenção de me magoar, mas fiquei a pensar que havia um problema comigo, que talvez houvesse uma regra qualquer que a minha mãe não estivesse a cumprir”.

Neuza tinha apenas sete anos, e, aos olhos daquela professora, não tinha direito a um penteado que não encaixasse num qualquer retrato comum de ‘boa africanidade exótica’.

“Era uma realidade que eu não compreendia e que também não questionava, mas que sentia”.

Ainda nos primeiros anos de ensino, a cor também determinou as brincadeiras.

 “Éramos três raparigas negras e, no recreio, estávamos sempre juntas. Não por escolha, mas porque, às tantas ficámos a olhar umas para as outras, e percebemos: ‘Estás sozinha, eu também estou, então vamos ser amigas. Apercebemo-nos que éramos diferentes dos outros, mas que éramos iguais umas às outras”.

O orgulho reforçado nas raízes a partir das diferenças

Nesse processo, Neuza perdeu a conta aos episódios de racismo – “hoje compreendo que não era uma questão de maldade dos meus colegas, mas de repetirem o que ouviam em casa” –, mas descarta vitimizações.

“Nunca me senti oprimida, nunca pensei ‘coitadinha de mim’. Pelo contrário, tive sempre a atitude: vou-me defender, vou-vos mostrar!”.

A par dos confrontos raciais da primária, Neuza travou, já no preparatório, uma série de embates socioeconómicos.

“Antes de ir para o ciclo, nem sequer tinha a noção da existência de bairros sociais. Aí comecei a aperceber-me de uma realidade muito diferente da minha, comecei a ver os níveis de pobreza que existiam, algo muito chocante para mim, porque a minha família não tinha muito, mas também não nos considerávamos pobres. E, de repente, estava a ter aulas com alguém que deixou de ir à escola porque os pais não podiam pagar os estudos”.

O contacto com as diferenças de classe, combinado com a vivência das desigualdades raciais facilitou um sentido único de pertença, destaca a curadora.

“Essas realidades criaram em mim um amor próprio maior pela minha raça. Ao conhecer as dificuldades por que passamos, fiquei ainda mais grata aos meus pais por tudo o que fizeram para que não tivéssemos a experiência que tantos colegas africanos tinham”.

Determinada em romper a narrativa de exclusão colada à sua pertença, Neuza viu no Direito o caminho para o fazer, até se libertar do peso da validação externa.

“Às tantas comecei a perceber que tinha de fazer aquilo que me satisfazia, e não uma coisa que provasse à sociedade portuguesa fosse o que fosse”.

Documentário do projecto interactivo “An Elegy to the Medium of Film”, dos artistas suecos Lundhal & Seitl, no qual Neuza Faria colaborou como produtora e performer

A viragem a partir de Londres

A viragem iniciada nos estudos em Londres ganhou expressão profissional com a entrada na Fundação Calouste Gulbenkian, onde desempenhou funções como técnica de educação e produtora executiva.

A experiência terminou ao fim de quatro anos, aos quais se seguiu uma temporada de três meses no Japão.

“Quando estava a estudar curadoria, a maior parte dos meus colegas, na residência, eram asiáticos. Então, comecei a interessar-me mais por arte asiática”, diz, Neuza, que, durante a viagem nipónica se dividiu em dois estágios.

 “Fiz uma pesquisa, contactei várias instituições, e acabei por receber duas propostas. Uma de uma galeria que depois vim a ser era de renome [Yamamodo Gendai] e outra de uma publicação de artes internacional. Aceitei as duas, por isso, além de planear exposições, também escrevia críticas”.

O apelo da Curadoria Educativa

A dupla aprendizagem abriu caminho para novas lições: depois de Tóquio, a especialista rumou para Estocolmo, destino de um mestrado em Curadoria, e de maturação profissional na Fundação de Arte Contemporânea da Suécia.

De volta a Portugal num 2020 de pandemia, que adiou a apresentação da tese que a tornará mestre, Neuza procura, aos 37 anos, espaço para desenvolver uma arte ainda sem expressão no país: a Curadoria Educativa.

“É uma forma super interactiva de trabalhar as propostas artísticas, fugindo daquela ideia do museu como um ‘cubo branco’. Quero muito criar um contexto que nos permita brincar dentro do museu”.

A abordagem, explica a curadora, está muito presente na prática criativa escandinava – que conheceu de perto na Suécia –, e tem, entre outros, o mérito de dar expressão artística, vivencial e transformacional a problemáticas do quotidiano.

“Uma das artistas com quem trabalhei em Estocolmo, abordou a temática da saúde mental, a partir de um jogo de luzes em que se simulava uma doença fictícia, causada pela falta de sol”.

No final, conta Neuza, não faltou quem reconhecesse, pela primeira vez, o seu ‘estado sombra’, encontrado na arte um caminho para a cura. Por mais vida!