Do Jornalismo para a Academia, Rui Machango leva humanização à ciência

Chegou a Portugal vindo de Maputo, para se formar em Jornalismo, área na qual se estreou ainda estudante, na redacção do entretanto extinto Comércio do Porto. Mais de três décadas depois, Rui Machango, de 56 anos, soma passagens por várias publicações, experiência entretanto colocada ao serviço do ensino. Primeiro na cidade portuense, onde inspirou planos de uma greve de alunos quando dava aulas no Secundário, e nos últimos anos em Moçambique, na qualidade de docente universitário. Agora de volta a Portugal, e a frequentar o doutoramento em “Comunicação para o Desenvolvimento”, imprime na academia uma sólida convicção: “Se a ciência não for humanizada, não vale nada”.

por Paula Cardoso

Terra de nascimento, crescimento e planos de amadurecimento, Moçambique era uma certeza no destino de Rui Machango, até se sobrepor uma nova direcção.

“Quando regressei ao país, depois de me formar no Porto, em 1993, a resposta que encontrei foi muito chocante. Disseram que não tinham nada preparado para mim, e que deveria voltar a Portugal para continuar os estudos”.

Na altura recém-regressado a Maputo, após a licenciatura na Escola Superior de Jornalismo, o moçambicano esbarrou num beco sem saída.

Perdido entre a expectativa da entrada no mercado de trabalho africano, e a realidade da falta de oportunidades, Rui não teve muito tempo para pensar.

“Aterrei em Maputo em Fevereiro, e em meados de Março estava de volta ao Porto, porque avisaram-me logo que as aulas de pós-graduação iam começar”.

Desta vez inscrito na Universidade Fernando Pessoa, o moçambicano juntou à licenciatura em Jornalismo Internacional a especialização em Jornalismo Político, percurso marcado por importantes aprendizagens extracurriculares.

“Houve uma altura em que tive três trabalhos ao mesmo tempo, algo muito importante para ganhar confiança”, conta, recordando que viveu a segunda temporada no Porto com vários dissabores financeiros.

Pelo contrário, o período da licenciatura foi bastante desafogado. “A minha situação era muito boa, porque estava com duas bolsas: uma da cooperação portuguesa, e outra da Noruega. Era mesmo um felizardo”.

Professor inspira-greves

A par do suporte monetário que recebia, Rui começou a trabalhar enquanto frequentava o terceiro ano, conciliando a entrada para uma redacção com o ensino numa escola secundária.

“Dava aulas ao 10.º e 11.º anos, sempre às segundas, quartas e sextas, e, da parte da tarde, tinha de estar no Comércio do Porto”, recorda, sem esquecer o primeiro dia como professor.

“Quando cheguei, a maioria dos alunos estava parada à porta. Olhei para eles e eles olharam para mim, até que perguntei quem era o chefe de turma. Foi um burburinho”.

Inicialmente surpreendidos com a presença de um professor negro, algo raro naquele contexto, os estudantes não demoraram a afastar eventuais estranhezas e desconfianças.

De tal forma que estavam dispostos a entrar em greve para impedir que o então docente deixasse a escola, desfecho que se tornou incontornável.

“O director estava a sofrer uma pressão muito grande para me afastar, porque eu não tinha a nacionalidade portuguesa e a escola era pública”, explica Rui, que, antes da saída, ainda recomendou a sua substituta.

“Ela ligava-me a dizer que os alunos queriam que eu continuasse. A determinada altura, tive de ir à turma pedir para respeitarem a nova professora”.

Com o Prof. Doutor Carlos Lopes, doutor honoris causa em estudo para o desenvolvimento, atribuído pela Universidade Politécnica de Moçambique, em 2017

 Durante uma palestra sobre Marketing na Universidade Eduardo Mondlane, 2018

Do Jornalismo para a Academia

A proximidade aos estudantes, experimentada no arranque dos anos 90, estreitou-se nos últimos anos com o regresso à docência, concretizado em duas universidades moçambicanas: a Eduardo Mondlane e a Politécnica.

“Tinha colocado a situação de Moçambique em standby, só que por pressão do meu irmão, que infelizmente já não está entre nós, fui desafiado a voltar, pelo menos para contribuir com alguma coisa para o país.”

A oportunidade começou por surgir no Jornalismo: ainda em Portugal, Rui negociou um contrato de trabalho com o grupo Soico, como coordenador de produção de conteúdos.

O vínculo, iniciado no final de 2010 e válido por seis meses, previa a abertura de uma delegação do canal STV em Nampula, que acabou por não acontecer, inviabilizando a continuidade contratual.

Já preparado para o regresso a Portugal, onde tem mulher e filha, Rui foi surpreendido com os convites para permanecer no país, integrado na Academia.

“De repente, estava ligado à universidade pública mais antiga de Moçambique – a Eduardo Mondlane –, e à primeira privada do país – a Politécnica”.

A partir daí, o Jornalismo que se tinha habituado a exercer em redacções – juntando ao Comércio do Porto a passagem por títulos como o Jornal Regional, Negócios & Oportunidades e o Notícias de Moçambique – deu lugar a quase 10 anos de prática curricular, que incluíram o ensino da cadeira de Jornalismo Especializado, na Escola de Comunicação e Arte da Universidade Eduardo Mondlane.

A humanização da ciência

Já na Politécnica, o desafio profissional deixou marca reformista: Rui Machango conseguiu converter a disciplina de “História das Ideias e do Pensamento Contemporâneo” numa referência que atravessa todos os cursos, das ciências sociais às engenheiras.

“Orgulho-me de ter feito isso”, revela o professor, adiantando que encontrou nas suas leituras múltiplas referências sobre os benefícios dessa expansão curricular.

“Recordo-me, por exemplo, de um texto sobre o MIT – Massachusetts Institute of Technology, instituição que embora focada nas novas tecnologias nunca descurou a questão do pensamento, integrando matérias de Sociologia, Filosofia e Inglês”.

A opção, salienta o docente, reconhece o valor da dimensão humana para a execução de qualquer técnica. “Se a ciência não for humanizada não vale nada”, defende o luso-moçambicano, apontando o potencial transformador da investigação académica.

“As teses de doutoramento devem servir para o desenvolvimento social, ser orientadas para o bem humano”.

Das reflexões à prática, Rui Machango prepara o seu próximo contributo, a partir dos estudos doutorais em “Comunicação para o Desenvolvimento”. A formação, iniciada com o regresso a Portugal, em Maio de 2019, deixa antever a publicação de uma tese para a mudança. Académica, social e humana, e quem sabe, com uma nova ligação a Moçambique.

“Até hoje sou considerado docente da Universidade Politécnica. Saí por motivos pessoais, de saúde da minha esposa, mas sei que as portas para voltar estão escancaradas”.

Sempre com vista para a humanização da ciência.

 Final da apresentação/ defesa de um trabalho de fim do curso, na Universidade Eduardo Mondlane, 2018