Livre da cadeia, presa à punição social: que futuro após largar um bebé no lixo?

A 5 de Novembro de 2019, a notícia do abandono de um recém-nascido num ecoponto, na zona de Santa Apolónia, em Lisboa, gerava uma imediata e compreensível onda de choque e indignação. Um ano mais tarde, já com a informação de que o bebé tinha sido ali deixado por Sara Furtado, jovem mulher negra, imigrante cabo-verdiana e sem-abrigo, veio a condenação: nove anos de cadeia por homicídio na forma tentada. A sentença foi agora revista pelo Supremo Tribunal de Justiça, que a reduziu para um ano e 10 meses de prisão, decisão que permite que a libertação de Sara aconteça no próximo mês. Mas até que ponto deixará de ser reclusa da sua história? Um caso em análise na segunda parte d’ O Lado Negro da Força, hoje, com o advogado José Semedo Fernandes como convidado.

por Paula Cardoso

Sara poderia ser, em vez de uma sem-abrigo, uma empresária com infindáveis recursos, ou uma trabalhadora em situação de precariedade. Poderia ser, em vez de uma imigrante cabo-verdiana, uma portuguesa dos quatro costados, ou uma alemã a usufruir da abertura pós-Schengen. Sara poderia ser também uma jovem mulher branca, ou uma menos jovem mulher asiática, em vez de uma jovem mulher negra.

Sara poderia ser qualquer uma e qualquer um de nós diante de uma situação extrema, mas, do alto da nossa bolha social, gostamos de nos convencer de que somos seres superiormente equilibrados. Do alto da nossa bolha social adoramos posar de juízes da vida alheia, porque “nunca” nos apanhariam nesta ou naquela situação.

E se, em vez disso, reconhecermos que a nossa condição humana é mais frágil do que queremos admitir?

Conseguiremos olhar para os outros com compaixão? Conseguiremos escutar antes de julgar? Descobriremos o caminho para a empatia?

Os monstros da nossa humanidade

O caso de Sara Furtado oferece-nos essa oportunidade. Depois de dar à luz na rua, em situação de sem-abrigo, a jovem mulher deitou o recém-nascido num ecoponto.

O bebé salvou-se, após 37 horas de abandono, resgatado por outro sem-abrigo que o ouviu chorar.

Os factos desafiam a nossa capacidade de compreensão, inflamam as nossas reacções e levam-nos, automaticamente, a atirar a pessoa capaz de tamanha atrocidade para a fogueira dos monstros.

Creio que o fazemos porque se torna mais confortável gerir a notícia com esse distanciamento: nós humanos isto, ela monstro aquilo.

Afinal, como assumir que a nossa saúde mental também nos pode levar a um acto de desespero intolerável?

Quantas “monstruosidades” conseguiríamos prevenir se cuidássemos da nossa humanidade?

Fruto do desespero

Não se trata de deixar de punir actos tipificados na lei como criminosos, nem de legitimar crimes. Trata-se de reconhecer que fazer Justiça vai muito além de aplicar códigos jurídicos.

Exige o acesso universal à cidadania plena, que Sara nunca teve.

Conseguirá conquistá-lo depois de ter abandonado o próprio filho no lixo?

Os juízes do Supremo Tribunal de Justiça entenderam que o fez porque “estava aterrorizada e sem condições de se autodeterminar”.

Por isso reduziram para um ano e 10 meses de cadeia a sentença de nove anos que começou por ser aplicada à arguida.

Realçando que “o que pode ser interpretado como premeditação e frieza não é senão fruto do desespero”, os magistrados deixam um apelo à sociedade.

“Não pode ser insensível, para fazer justiça, às agruras da sua situação e, em prol da sua dignidade, não pode senão tratá-la com o respeito que merece todo o ser humano”.

Agora que está a dias de sair da prisão, resta saber até que ponto Sara Furtado deixará de ser reclusa da sua história.

Um caso em análise mais logo n’ O Lado Negro da Força. Para ver a partir das 21h, no Facebook e no YouTube