Mamadou Ba condenado: “O Estado capitula e a justiça branqueia um nazi”

O activista anti-racista Mamadou Ba foi condenado hoje, 20, a pagar uma multa de 2400 euros por ter publicado, no Facebook, que o cadastrado nazi Mário Machado foi “uma das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro”. Na leitura da sentença, esta manhã, no Campus da Justiça, em Lisboa, a juíza Joana Ferrer assinalou que o dirigente do SOS Racismo não emitiu uma simples opinião, e que atribuiu a Machado “um facto falso e indiscutivelmente lesivo da sua honra”, ao chamar-lhe assassino, apreciação que – importa sublinhar – vai além do que Mamadou escreveu. Na reacção à decisão, da qual a sua advogada, Isabel Duarte, vai recorrer, o activista lamenta que o Estado através da instituição judicial tenha optado por “acolher os algozes e abandonar as vítimas da violência racial”. Além de reiterar que este processo é “uma tentativa de silenciamento do anti-racismo”, Mamadou sublinha que “quando o Estado deixou que as suas instituições fossem capturadas pela extrema-direita, a consequência é que a Justiça branqueia um confesso criminoso neonazi”.

Pronunciamento de Mamadou Ba, após a leitura da sentença que o condena a pagar uma multa de 2400 euros, no processo que o opõe ao cadastrado nazi Mário Machado

Dizer que Mário Machado é uma das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro é simplesmente a forma mais benigna de descrever como ele se destacou na noite de “caça ao preto” pela violência com que agrediu as suas vítimas com um taco de beisebol, na cabeça, até as deixar inanimadas, como aliás refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

No festival de violência em que Alcindo Monteiro foi assassinado, Mário Machado desferiu golpes na cabeça da maioria das pessoas agredidas nessa ocasião, que só não morreram por mero acaso. É de conhecimento público que as decisões em todas as instâncias judiciais que se pronunciaram sobre a violência racista da noite de 10 de junho de 1995 não deixaram margens para dúvidas sobre o inegável envolvimento de Mário Machado na preparação e execução do macabro plano de “caça ao preto” que resultou no assassinato de Alcindo Monteiro. A propósito da responsabilidade grupal do terror da noite de 10 de junho de 1995, o acórdão do Supremo Tribunal sublinha que: “[…] (ocorreu um) fenómeno associativo: quer ao nível da idealização e preparação do crime quer ao nível da sua execução material, as vontades dos comparticipantes unem-se na prossecução no fim comum, da operação conjunta. A ação de cada comparticipante perde a sua individualidade própria e pertence não só ao seu autor, mas a todos os coautores. A ação de cada coautor é causal do crime, ainda que em concreto não se mostrem com nitidez todos os seus contornos. Cada co-autor é responsável pela totalidade do evento, pois sem ação de cada um o evento não teria sobrevindo. Muitas vezes a simples presença de um agente no local do crime é suficiente para convencer outrem a praticá-lo.”

É por isso que desde o início desta farsa que afirmei e reitero, hoje ainda mais, este processo nunca foi entre mim e o criminoso neonazi, é sim, uma tentativa de silenciamento do anti-racismo.

De facto, o Ministério Público optou por estar ao lado de um triplo empreendimento de caráter político que consiste em branquear um criminoso neonazi, normalizar a extrema-direita e a violência racial e silenciar o anti-racismo. Já em sede de instrução, o juiz Carlos Alexandre encaminhou este empreendimento da luta política da extrema-direita por via da manipulação e captura das instituições. Com efeito, durante todo o julgamento, a procuradora Teresa Silveira Santos foi, não só corroborar a posição do juiz Carlos Alexandre, mas pior ainda, esforçou-se em se substituir ao próprio Mário Machado na sua estratégia de branqueamento, ignorando propositadamente o seu contínuo envolvimento num trajeto de violência política ao longo dos anos. Estando em causa um juízo sobre honra e reputação, não deixa de ser curioso que o Ministério Público, que é suposto de defender o interesse geral e a urbanidade pública, ignore totalmente a personalidade e os atos de alguém cuja intervenção pública tem aspetos morais e éticos que colocam em causa a dignidade humana, um dos fundamentos primordiais da democracia. Que o Ministério Público tenha essa postura já é suficientemente grave, mas que a procuradora entenda que o “Estado português deve defender a honra de um cidadão português nascido em Portugal”, mesmo sendo um confesso neonazi, contra outro cidadão português, sim, mas não nascido em Portugal é escandaloso e inaceitável.

Aliás, sendo o crime de difamação um crime particular em que se pode exigir uma reparação por danos morais, fosse este processo sobre defesa da honra e reputação, o criminoso neonazi teria pedido uma indemnização por mais pequena e simbólica que fosse, para provar que o que o move é somente lavar a honra. Mas, consciente de não ter honra nenhuma nem reputação alguma a defender e, sobretudo, perfeitamente ciente de que a estratégia de normalização da extrema-direita e de silenciamento do anti-racismo encontra algum eco dentro das instituições da República, Mário Machado conseguiu transformar a instituição judicial num instrumento de combate político da extrema-direita contra o movimento anti-racista. Esperamos e lutaremos para que outros processos em curso nos tribunais, como o de Cláudia Simões, não tenham o mesmo desfecho.

Portanto, se nunca esteve em causa a indesmentível participação de Mário Machado na razia racista em que foi assassinado Alcindo Monteiro, com o posicionamento do Ministério Público e esta sentença que o corrobora, podemos dizer que o Estado através da instituição judicial escolheu acolher os algozes e abandonar as vítimas da violência racial. Quando o estado deixou que as suas instituições fossem capturadas pela extrema-direita, a consequência é que a Justiça branqueia um confesso criminoso neonazi.

Da nossa parte, mantemos tudo o que dissemos e continuaremos a luta por todos os meios até às últimas consequências. Devemo-lo fazer por imperativo de consciência democrática que não nos permite ceder um milímetro que seja perante o fascismo e o racismo, mas também por dever de humanidade: salvaguardar a memória das vítimas do racismo é a única forma de enfrentar a desumanidade da violência racial. A luta continua.

Mamadou Ba, 20 de Outubro, de 2023