O branqueamento dos negros em Portugal, na obra de José Ramos Tinhorão

Que referências nos acompanham na nossa construção de negritude e africanidade? Quais os livros, filmes, séries, discografia ou palestras que nos ajudaram a desmontar a armadilha da história única? Publicamos, neste espaço, sugestões que espelham esse despertar identitário. O livro “Os Negros em Portugal”, do escritor brasileiro José Ramos Tinhorão, oferece-nos, a cada um dos 12 capítulos, uma obra única. Essencial para quebrar um longo e nada inocente silenciamento.

por Afrolink

Se ainda hoje, em pleno século XXI, não conseguimos contabilizar a presença negra em Portugal, o que poderemos dizer da sua expressão há mais de cinco séculos?

Ao longo de quase 600 páginas de investigação, enriquecidas por cerca de 500 notas do autor e uma valiosa lista de fontes e referências bibliográficas, José Ramos Tinhorão quebra um longo e nada inocente silenciamento.

“Na verdade, o que o conjunto das opiniões evidencia é que os autores portugueses, em geral, preferem não aprofundar o tema, talvez para não cair em contradições gritantes”, assinala o escritor brasileiro no último capítulo de “Os Negros em Portugal”, intitulado “O branqueamento dos negros em Portugal”.

Nesta passagem da obra, Tinhorão assinala o esforço de alguns estudiosos  em ‘limpar’ a população portuguesa de “possíveis vestígios de ‘nódoas pigmentares’”, característica apontada pelos criminosos da eugenia como prova de inferioridade humana.

A.A. Mendes Corrêa, por exemplo, classificou de “escassíssima”  “a proporção de negroides, mulatos, ou negros” no país, escrevendo mesmo que “têm-se acumulado os documentos comprovativos de que são reduzidíssimos os vestígios das influências negríticas ou simplesmente negroides na população portuguesa actual”.

“Já em 1466 havia em Évora três mil escravos de ambos os sexos”

A leitura de Mendes Corrêa, publicada já no século XX no livro “Raça e Nacionalidade”, entra em contradição com outras referências, nota Tinhorão, lembrando palavras de Oliveira Martins.

“Os escravos, repugnante legado da descoberta da África e do domínio ultramarino, punham na sociedade uma mancha torpe; e na fisionomia das massas, borrões de cor negra, pelas ruas e praças da capital. Tinham-se e tratavam-se como gado. Criavam-se rebanhos de mulheres para crias, porque um pretinho novo, desmamado apenas, já valia 30 a 40 escudos. As negras soíam ser fecundadas e inçavam as casas de negrinhos e mulatinhos, como diabos, chocarreiros, ladinos, quem não gostaria deles?”.

José Ramos Tinhorão, fotografado por Rovena Rosa @Fotos Públicas

Os diferentes registos, defende Tinhorão, deveriam suscitar uma compilação e análise, sem pré-julgamentos, das informações disponíveis, “sobre como se processou, desde o início dos contactos com a África negra, na segunda metade do século XV, o relacionamento pessoal entre a sociedade branca e os escravos que daquele continente chegavam cada vez em maior número”.

Em vez disso, o mito de um Portugal branco continuou e continua a prevalecer. Talvez para apagar a dívida histórica com os negros, cujo trabalho escravo – e não a romanceada veia expansionista – construiu a economia e a nação portuguesas.

“Já em 1466 havia em Évora três mil escravos de ambos os sexos. Mas depois de circum-navegada a África, a quantidade cresceu prodigiosamente”, escreveu Costa Lobo, citado por Tinhorão. Apesar de antiga, constante, crescente e relevante, a presença negra em Portugal continua a ser varrida para debaixo do tapete da história.

A obra de José Ramos Tinhorão destapa múltiplos encobrimentos.

Publicado pela primeira vez em 1988, “Os Negros em Portugal” ganhou uma terceira edição no ano passado, pela mão da Caminho, do grupo Leya.