O “poeta mulato” da escola de Gil Vicente, eternizado por linhas racistas

“Um povo sem o conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”, escreveu o jamaicano Marcus Garvey, um dos ícones maiores do movimento pan-africano. Retomamos aqui o seu pensamento para enquadrar as linhas que se seguem. Com actualização semanal, darão a conhecer, de forma sucinta, figuras e episódios que fazem parte do legado negro. Afonso Álvares, que as escassas referências documentais descrevem como “o poeta mulato”, chega até nós como um sucessor de Gil Vicente, imortalizado entre insultos racistas.

por Paula Cardoso

Se o nome de Gil Vicente é incontornável no estudo da dramaturgia de língua portuguesa, o de Afonso Álvares também deveria ser reconhecido, pelo contributo deixado para o teatro hagiográfico quinhentista em Portugal.

“Dentro do género, Afonso Álvares é o autor mais produtivo”, assinala o professor José Camões, em “Obras de Afonso Álvares”, trabalho inserido numa série de volumes dedicada ao teatro português do século XVI.

Nessa publicação – resultante de uma parceria entre o Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e a Imprensa Nacional-Casa da Moeda –, José Camões sublinha que, na época em análise, os autos com títulos de santos não foram muito além da dezena, circunstância que torna ainda mais notável a produção deixada por Afonso Álvares.

“Depois de Gil Vicente, autor de cerca de cinco dezenas de obras teatrais, os poetas dramáticos mais profícuos do nosso século XVI foram António Prestes (sete autos), António Ribeiro Chiado (cinco autos, um dos quais perdido), Baltasar Dias e Afonso Álvares (quatro autos cada um), sendo este último o mais produtivo autor do nosso teatro hagiográfico quinhentista”.

José Camões nota ainda que os Autos de Santo António, Santa Bárbara, Santiago e São Vicente, assinados por Afonso Álvares, “no seu conjunto conheceram, até hoje, mais de 60 edições, o que revela bem o sucesso que a sua representação nunca deixou de obter”.

Apesar da popularidade – os autos continuam a ser “levados à cena com regularidade no Norte de Portugal” –, o especialista observa que, à semelhança do que acontece em relação à maioria “ou mesmo totalidade dos autores portugueses quinhentistas que escreveram para teatro”, o que se sabe da biografia de Afonso Álvares “resume-se a escassas linhas”.

Com o alvo da cor

Nessa sinopse, os insultos racistas que lhe foram dirigidos pelo colega de letras, António Ribeiro Chiado, assumem especial relevo.

“Não fosse a revolta das palavras de Chiado, provavelmente a história não reconheceria Afonso Álvares como um autor negro”, considera Osvaldo Costa, na dissertação “Fragmentos de um poeta: reflexão crítica da poesia modernista de Deolindo Tavares”.

Na tese, apresentada na Universidade Federal de Pernambuco, o autor recorre a elementos compilados pelo poeta, escritor, crítico e historiador da literatura brasileira, Oswaldo de Camargo, para reconstituir a trajectória de Afonso Álvares, apresentado como o primeiro autor de “origem etíope” a escrever em língua portuguesa.

“Nascido e criado no palácio do bispo de Évora, Dom Afonso de Portugal, casou-se com a filha de um taberneiro, e vivia como mestre-escola, compondo também, por encomenda dos franciscanos, autos, isto é, dramatização da vida dos santos”, lê-se no trabalho académico.

Sobre o duelo racial que travou, a dissertação, citando a obra “O negro escrito: apontamentos sobre a presença do negro na Literatura Brasileira”, de Oswaldo de Camargo, aponta: “Chiado compõe duras estrofes de cinco versos contra o escrevinhador Afonso Álvares, chamando-o de “mulato nascido da imundície”, isto é, bastardo”.

As palavras, enquadrou Oswaldo, surgiram numa escalada de rivalidade, a partir de um castigo aplicado pelo clero a Chiado, que acabou por se retractar, momento que Afonso Álvares não deixou passar em branco.

“Chiado é um frei beberrão…feito uma botija de Baco”, escreveu o rebaptizado “poeta mulato”.

Rivalidade para mais de 350 versos

O despique entre os dois autores, ambos reconhecidos como discípulos da Escola Vicentina, que engloba dramaturgos populares continuadores da obra de Gil Vicente, está também em foco na tese “O teatro de António Ribeiro Chiado: perfis femininos no Portugal Quinhentista”, de Vanessa de Souza.

A dissertação, apresentada na Universidade Federal Fluminense, reproduz o tom ofensivo das letras imortalizadas pelo poeta Chiado contra Afonso Álvares.

“E eu por fado te dou/ seres toda a tua vida/  mulato com ver perdida/ ess’alma que te ficou/ sem teres nunca guarida” (…) “Porque certo é para crer/ que quem tem côr de carvão/ é signal que o coração/ não pode deixar de trazer/ de cadella a condição” (…) “E ainda mais além/ que essa desgraça tem/ de preto; e é a verdade/ tão preto da escuridade/ como da virtude áquem”.

Os ataques, que embrenharam Afonso Álvares numa produção de cerca de 350 versos de querela, nunca ficaram sem resposta.

Numa dessas ocasiões, o “poeta mulato” assinalou: “Tu não achas mais em mi\ que dar nesta cor presente\ pois que Deos me fez assi\ e não tão mau como ti\ dou-lhe graças de contente”.