O voo poético e político de Jamila Pereira, com escala em Pablo Neruda

Aterrou em Inglaterra para uma temporada de férias, entretanto prolongada numa estada de 10 anos. Sem planos de voltar a viver em Portugal, o país de nascimento, Jamila Pereira sonha com um projecto próprio na sua Guiné-Bissau de consanguinidade. Até lá, concilia a prestação de cuidados geriátricos com estudos em Ciências Políticas e a publicação de poesia. Para ler na antologia anti-racista e anti-fascista “Volta para tua terra”, de páginas abertas para novas obras, e para a vida de Pablo Neruda.

por Paula Cardoso

Primeiro chorou. Depois desconfiou e escrutinou. Por fim reparou. “Percebi que alguma coisa se passava naquele dia”, conta Jamila Pereira, de regresso a um momento de viragem na sua história. Na altura recém-chegada à cidade britânica de Leeds, a então jovem adulta ‘chocou’ com algo até aí inimaginável.

“Lembro-me de ir para casa e ficar horas e horas a pensar no que me tinha acontecido. Uma coisa tão simples quanto alguém me parar na rua para me dizer que sou linda”.

Habituada a não ser vista em Portugal – “senti-me sempre excluída” –, Jamila recorda que esse foi o dia em que começou a reconhecer beleza na sua imagem.

“Em 18 anos de vida, só a minha família me tinha dito que eu era linda. Aquilo fez-me chorar e acreditar que estava a ser gozada. Pensei: ‘Ele está a mentir’. Depois fui observar-me ao espelho”.

O reflexo, inicialmente ainda distorcido por toda uma vida de microagressões, tornou-se mais nítido à medida que recriou raízes.

O espelho colonizado

“Quando falamos de colonialismo, racismo e trauma, é sempre com foco nas atrocidades que os portugueses cometeram. Não pensamos no impacto que tem na visualização de nós mesmos, sempre que nos olhamos ao espelho”.

A consciência da internalização de um ideal de beleza branco, combinada com o acesso a um ambiente africano culturalmente mais diverso – “pela primeira vez vi-me com pessoas do Gana, da Nigéria…” – activou um mergulho ancestral.

“Aprendi que era africana quando me mudei para Inglaterra. Foi um abre olhos imenso. Então comecei a procurar informação, a querer saber mais um pouco sobre a Guiné e sobre África”.

Nesse processo, Jamila sublinha que aprendeu a falar crioulo em Leeds.

“Que ironia para alguém que viveu 18 anos em Portugal, não é? Mas a verdade é que os meus pais sempre tiveram receio de nos ensinar a língua, porque pensavam que iríamos ser separados na escola, que as pessoas nos iriam dar menos atenção, ou que não iríamos desenvolver o português tão correctamente e, por isso, seríamos incapazes de progredir”.

Apesar de reconhecer que as preocupações familiares eram justificadas – “o meu pai teve experiências tão negativas, que não queria que se projectasse em nós” –, Jamila reitera o compromisso de combater todas as marcas de opressão colonial.

“Quando vim para cá decidi rodear-me simplesmente de guineenses, decidi tentar descobrir mais sobre as minhas origens. Então, também comecei a ler artigos, a ver documentários, a fazer imensas perguntas”.

Lugar de pertença sobre o lugar de nascença

A aprendizagem, sublinha Jamila, tem beneficiado da sabedoria paterna.

“Isto tudo ainda passa ao lado da minha mãe, que me diz: ‘Ai, não precisas saber da Guiné, estamos ali num pandemónio…,mas o meu pai é um professor autêntico, adora falar e falar e falar. Então, eu digo: ‘Pai conta-me lá sobre isto, conta-me aquilo…e as etnias…”.

A cada lição, a condição de guineense nascida em Portugal sai fortalecida – em contraponto à de portuguesa com origens na Guiné –, identidade que propositadamente apõe o lugar de pertença ao lugar de nascença.

“Já não me imagino a viver em Portugal”, diz Jamila, que começou por ir de férias para Inglaterra, ao encontro do irmão gémeo. Hoje, uma década depois da viagem, a decisão de ficar celebra-se não apenas entre conquistas de valorização identitária.

“Aos 24, 25 anos, após muitos anos de trabalho, resolvi parar e reflectir: ‘Ok, qual é o meu propósito na vida? Do que é que gosto? O que quero fazer?”.

O exercício introspectivo, indissociável de um diagnóstico de depressão, reactivou aspirações adormecidas.

“Mesmo sendo Inglaterra um país de tantas oportunidades, tive de escolher entre estudar e trabalhar. No início achei que seria temporário, mas ao sentir o gosto da liberdade financeira acabei por ficar confortável com o dinheiro, cair na falácia do trabalho, e deixar a educação um bocado de lado”.

A Política e a Poesia

O entusiasmo consumista e a realização de gerir uma conta bancária, próprios da entrada no mercado de trabalho, tornaram-se, com o passar do tempo, insuficientes.

“Encontrei-me super deprimida. Aí comecei a fazer terapia, e cheguei a estar no hospital umas quantas vezes, muito, muito em baixo. Foi quando dei por mim a pensar no que quero da vida, e concluí que gosto de ler e de escrever, adoro Política e adoro discutir”.

As tomadas de consciência, e a lembrança de que sempre planeou continuar os estudos, abriram caminho para a inscrição universitária em Ciências Políticas.

“Foi a melhor escolha da minha vida”, garante, já a contar os dias para a formatura: “Falta-me só um mês”.

A par da caminhada académica, que se poderá alongar para um mestrado em Jornalismo ou Estudos Africanos, Jamila, hoje com 28 anos, aprimora-se na poesia.

A aventura literária descolou em 2019, com a participação numa competição promovida pela #Merky Books, chancela criada pelo rapper britânico Stormzy dentro da Penguin Books.

“Tinha acabado de começar a escrever e fiquei no top 20 entre 2000 pessoas”, recorda, destacando o efeito encorajador do resultado. “No mesmo ano inscrevi-me no festival de literatura Excellence, em Londres, e ganhei”, congratula-se Jamila, aí distinguida por apresentar o melhor roteiro.

O destino guineense

O reconhecimento iniciado em Inglaterra estendeu-se, já este ano, à entrada na obra “Volta para tua terra: uma antologia antirracista/antifascista de poetas estrangeirxs em Portugal”, da editora brasileira Urutau.

“Participo com um poema sobre a Guiné”, revela, partilhando as inquietações escritas. “Acho que é muito fácil dizer que a Guiné é um narco-estado, que não tem potencial para ir para a frente, quando não se tem noção da história, do contexto colonial em que estivemos”, realça, descartando leituras políticas simplistas.

“Por um lado, Portugal não quis sair, quis ficar e tirar tudo o que podia dos nossos países. Por outro lado, temos de nos lembrar que a União Soviética usou a Guiné e outros estados africanos como uma ferramenta para atacar os EUA. Então, é importante sabermos que culpar a corrupção é o mais fácil, porque ignora o que aconteceu antes, e como os poderes coloniais actuaram”. 

Além de se evidenciar como inspiração poética, a Guiné também sobressai na visão de futuro de Jamila.

“Depois de trabalhar um ano ou dois para uma grande organização, como a ONU ou a Oxfam, quero investir no meu próprio negócio”, antecipa, de destino apontado para as raízes. “Tenho um terreno enorme na Guiné, comprado pelo meu pai, e quero ver se faço um orfanato”.

Os planos, ainda sem calendarização, cumprem uma veia igualmente saliente na história da poeta: a de cuidadora, neste momento dedicada à prestação e cuidados geriátricos em contexto hospitalar.

“É um trabalho muito gratificante, apesar de apertar o coração”, admite, antes de partir para um auto-diagnóstico.

“Como costumo dizer sempre à minha terapeuta, às vezes é um pouco difícil dar o amor que dou aos outros a mim mesma. Então, tenho tentado ser mais carinhosa comigo”.

Neste processo de auto-cuidado, Jamila repara a confiança e o amor-próprio subtraídos ao longo de anos de microagressões. Por isso, hoje quando se olha ao espelho, vê o reflexo do seu mundo de potencialidades. “Quero ser o novo Pablo Neruda, na versão feminina: a diplomata e o poeta”.

Para já, seguimos com a sua poesia:

Pepel – poetry

 Our tongue was a victim of genocide

&

somehow they are still surprised by how well-spoken we are

 

Mother of all souls 

How dare you shame us for being the epitome of life itself? As if your existence and someone’s meaty lips were not sacredly married through a stroke and eternity. Don’t you know I dance vigorously through fertility as I approach the Red Sea? It isn’t a heartbeat but yes, a tuneful uterus who guides me every step of the way. 1,2,3 and maybe 4 steps through vessels, rivers and fluids. Despite the fact we can’t swim against the patriarchal tide and our breathing gets heavier every time, we still reach the full moon in this resilient pink canoe. So please, bow down as the Mother of all souls deploys everlasting damehood between our thighs: the gift to gift life, love, deceit and nonetheless, bloody Katrina.

 

Choked to death

As they hold hands, I can still see their shadow around my neck

Muting my voice, killing me slowly

My tiny body never stood the chance or had the strength to fight back

It was both our devious society and the African culture that raised me that forced me into

laying beside silence.