Ordem para demolir, ou devemos dizer perseguir? – bairro da Jamaica na mira

A tensão regressou ontem, 9, ao bairro da Jamaica, no Seixal, na véspera das alegações finais do julgamento em que quatro moradores – pertencentes à família Coxi – estão a ser acusados de vários crimes, na sequência de confrontos com a polícia, aí ocorridos no início de 2019. Agora, o foco de contestação é uma acção da Câmara Municipal local, que avançou com uma ordem de demolição de uma série de estabelecimentos comerciais identificados como ilegais. A decisão, garantem os proprietários das lojas, está, ela própria, ferida de ilegalidade, porque ninguém foi notificado. O caso está a ser acompanhado pela advogada Lúcia Gomes, que relata ao Afrolink o cenário de destruição que encontrou na Jamaica, e questiona a base legal da autarquia para investir sobre os espaços comerciais. O tema marca presença amanhã, n’ O Lado Negro da Força.

por Paula Cardoso

Entraram para destruir. De retroescavadoras em riste, e acompanhados de um forte dispositivo policial, funcionários da Câmara Municipal do Seixal avançaram ontem, 9, sobre uma série de estabelecimentos comerciais no bairro da Jamaica, e prometeram voltar até não sobrar uma única loja na ilegalidade.

A operação, iniciada às primeiras horas da manhã, surpreendeu os proprietários dos espaços, que garantem não ter sido notificados da decisão autárquica.

O desconhecimento da intervenção chegou mesmo a activar alertas de que se trataria de mais uma operação policial musculada no bairro, assinala ao Afrolink a advogada Lúcia Gomes, que está a acompanhar o caso.

“Percebi logo que aquilo não tinha a ver com a Polícia, mas com uma acção do departamento de fiscalização da Câmara Municipal de Seixal. Por isso, liguei logo para lá para verificar se tinham feito ou iam fazer alguma intervenção no bairro, e saber com quem é que eu podia falar”.

Depois de se identificar como advogada de um dos proprietários dos estabelecimentos comerciais, e de questionar a legitimidade da operação, a advogada ficou pendurada.

“Não passaram a ligação a ninguém, e acabei por enviar um e-mail a solicitar a justificação legal para estarem a entrar nos estabelecimentos comerciais. Pedi para mandarem o acto administrativo e a fundamentação legal, bem como o pedido do contingente à polícia, para saber quantos efectivos foram solicitados”.

Lúcia Gomes sublinha que é importante perceber se o forte aparato de forças segurança observado no bairro partiu de um requerimento da Câmara, ou de uma decisão policial.

“Ninguém sabia de nada”

Seja como for, a operação volta a demonstrar como as autoridades intervêm nos bairros periféricos: criminalizando os seus moradores, invariavelmente intimidados, e sujeitos a um uso excessivo da força.

Os atropelos à lei, tantas vezes denunciados e, nos últimos tempos também registados em vídeo, voltam a estar em evidência na Jamaica, agora protagonizados pela Câmara do Seixal.

“Não havia nenhum edital colado no bairro, nem os proprietários dos estabelecimentos foram notificados pessoalmente. Ninguém sabia de nada”, reforça Lúcia Gomes, realçando que compete à autarquia fazer prova de que informou os visados.

A advogada explica ainda que, mesmo diante dessa comunicação aos comerciantes, e na eventualidade de um incumprimento, “o que cabia à Câmara era fazer queixa ao Ministério Público por desobediência civil, e depois iniciar um procedimento urgente de despejo administrativo, que daria a todos 45 dias para fecharem tudo”.

Despojados desses e de outros direitos, os proprietários das lojas viram todo o equipamento ser retirado, e ainda tiveram de lidar com o desprezo dos algozes.

“Além da necessidade de clarificarem a questão da notificação, vão ter de contabilizar os prejuízos, porque levaram frigoríficos, levaram balcões…e nalguns casos até disseram: ‘Só devolvemos quando vocês mostrarem as facturas disto’”.

Intervenção em vésperas de julgamento 

Os excessos que acompanharam toda a operação acentuam suspeitas de perseguição aos moradores, mais ainda se tivermos em conta o timing da intervenção, estranhamente implementada na véspera das alegações finais do julgamento do chamado “Caso Jamaica”.

O processo remonta ao início de 2019, quando o bairro foi palco de confrontos entre a polícia e moradores, resultante em acusações contra quatro elementos da família Coxi e um agente da PSP.

Hortêncio Coxi, um dos arguidos nesse caso, voltou a estar ontem na berlinda: é proprietário de um dos estabelecimentos comerciais atacados pela fúria demolidora. Detido por filmar a acção policial com o telemóvel, após pedir explicações sobre a intervenção e não obter qualquer resposta, Hortêncio foi entretanto libertado, mas continua sem saber porque é que o seu estabelecimento foi visado, se estava em curso um processo de licenciamento junto da autarquia.

Segundo Lúcia Gomes, em 2020 os proprietários das lojas foram notificados sobre a necessidade de legalizarem os seus negócios, algo que levou Hortêncio a avançar com o registo nas Finanças e pedido de licença camarária que, até à data, não foi concedido.

Depois desse aviso emitido no ano passado, a advogada adianta que não tem conhecimento de uma nova notificação, e salienta que o único documento que encontrou, após pesquisa online, é um edital de 27 de Outubro último.

“Já li e reli o edital e em momento nenhum fala em demolição. Do que fala é de queixas de barulho, queixas de não respeitarem o distanciamento social, etc”, nota Lúcia Gomes, ainda à espera de uma fundamentação legal. Onde está?

Reflectimos a amanhã n’ O Lado Negro da Força.

Para ver no Facebook e no YouTube, a partir das 21h.