“Rapariga, Mulher, Outra”, entre personalidades de uma identidade negra

Livro de ficção do ano nos British Book Awards 2020, vencedor do Man Booker Prize de 2019, e indicado para vários outros prémios literários, “Rapariga, Mulher, Outra”, da escritora Bernardine Evaristo, estreia-se hoje no mercado editorial português, sob a chancela Elsinore, do Grupo 20|20. Com ele chegam-nos 480 páginas de intersecções humanas, sobretudo femininas e negras, numa viagem por ancestralidades e diásporas africanas, destinos de exclusão e segregação racial, e um sem número de sinuosidades identitárias. Inebriante.

por Paula Cardoso

A lista de aclamações não pára de aumentar. Desde o lançamento em Inglaterra, em Maio de 2019, “Girl, Woman, Other”, oitavo romance da anglo-nigeriana Bernardine Evaristo, continua a somar distinções.

Em prémios literários, contam-se troféus no Man Booker Prize de 2019 e nos British Book Awards 2020 – de onde saiu com os títulos de livro de ficção e autor do ano. Em publicações na imprensa, multiplicam-se as referências como “melhor livro de 2019”. Finalmente, em recomendações pessoais, destacam-se, entre outros, o reconhecimento do ex-Presidente dos EUA, Barack Obama.

O sonoro coro de louvores, dirigido a “Girl, Woman, Other”, consagrou Bernardine Evaristo como a primeira mulher negra a conquistar o Prémio Booker (que arrebatou ex-aequo com a canadiana Margaret Atwood). A  distinção pioneira repetiu-se nos British Book Awards, em que, juntamente com a estreante de origem jamaicana Candice Carty-Williams – autora de “Queenie” (vencedor do ‘Livro do Ano’) –, inaugurou a galeria dos autores negros galardoados na prestigiada tribuna literária.

É com este longo e destacado rasto de méritos – a que, na próxima quarta-feira, 9, se pode juntar o Women´s Prize for Fiction –, que  “Girl, Woman, Other” se estreia no mercado português.

Sob a chancela Elsinore, do Grupo 20|20, a obra-estrela da escritora anglo-nigeriana está à venda, a partir desta segunda-feira, 7, com o título “Rapariga, Mulher, Outra”.

“É incrivelmente gratificante saber que o meu trabalho está finalmente a atingir um público leitor mais vasto”, congratula-se Bernardine Evaristo, consciente do momento de “auto-interrogações” que a indústria editorial vive, a partir do movimento Black Lives Matter.

Toda a humanidade em 12 personagens

“É fantástico, também, ver tantos outros livros de escritores de cor invadirem as tabelas. Tenho quase a certeza de que é um fenómeno sem precedentes. É claro que foi desencadeado pela tragédia da morte de George Floyd, e devemos sempre lembrar-nos disso”, sublinhou a escritora, citada pela Elsinore, na mensagem de divulgação do livro.

 

Com 480 páginas de intersecções humanas, sobretudo femininas e negras, “Rapariga, Mulher, Outra” guia-nos numa viagem por ancestralidades e diásporas africanas, destinos de exclusão e segregação racial, e um sem número de sinuosidades identitárias.

O roteiro, percorrido ao ritmo de 12 mulheres negras – uma das quais deixa de se chamar Megan para assumir uma identidade não-binária na pele de Morgan –, atravessa conceitos de raça, classe social, género e sexualidade. Como um mapa-mundo de humanidade, bem demarcado na dedicatória: “Para manas & as babes & as babys & as sistahs & as mulheres & as divas & as deusas & as damas & os malandros & os manos & os damos & os cavalheiros & os homens & os brothas & a irmandade LGBTQI+ da família humana”. Cabem todos em “Rapariga, Mulher, Outra”.

Identificação negra e o necessário acolhimento de novas vozes

 

Bernardine Evaristo é filha de mãe inglesa e pai nigeriano, nasceu em Inglaterra em 1959, e cresceu no sul de Londres. Eu nasci em Moçambique em 1979, filha de pais moçambicanos, com ascendências portuguesa e chinesa, e cresci nas periferias de Lisboa. Não fôssemos ambas negras e, palpito eu, pouco daquilo que Bernardine Evaristo escreve ressoasse como ressoa em mim.

 

Directa ou indirectamente, as experiências presentes em “Rapariga, Mulher, Outra” estão entrelaçadas às minhas próprias vivências, e às das minhas irmãs, amigas e ancestrais africanas e afrodescendentes.

 

Os exemplos de identificação com a narrativa de Bernardine – como se cada personagem pertencesse ao meu círculo social e familiar –, sucedem-se ao longo das 480 páginas do livro.

 

Da necessidade de “aprender tudo quanto pudesse sobre a herança negra, a sua história, a cultura, a política, o feminismo”, vivida por Dominique; à interiorização do ideal de beleza branco reportado pela mãe de Amma –  “Ela disse-me que sempre se tinha achado feia e que isso só parou quando os africanos lhe disseram que não, que era bonita” –; passando pelo confronto diário com micro-agressões racistas, bem expresso na rotina de Carole. “(…) só há um problema, é ela não conseguir parar de recordar cada pequena humilhação, os colegas que a elogiam por se expressar tão bem, incapazes de disfarçar a surpresa…”.

 

Por cada história que me é dada a conhecer em “Rapariga, Mulher, Outra” – , às partilhas de Amma, Dominique e Carole juntam-se as de Yazz, Bummi, LaTisha, Shirley, Winsome, Penelope, Megan-Morgan, Hattie e Grace –, encontro mais e mais reflexos da minha identidade negra.

 

O difícil acesso ao centro para quem sai das margens – “para chegar àquela universidade com tão longa história, teve de apanhar um autocarro, depois o metro, depois um comboio…”; o sentimento de solidão – “na primeira semana contou pelos dedos de uma mão as pessoas de pele escura, sendo ela a mais escura de todas” –; as opressões da “aceitação” – “alisou o cabeço riçado, e quanto Marcus comentou que o preferia ao natural, ela respondeu que, usando-o dessa maneira, jamais arranjaria emprego”.

 

Tudo isso acontece em Inglaterra, e tudo isso acontece também em Portugal. A diferença é que, por cá, o mercado editorial parece desinteressado de vozes negras locais, o que ressalta da leitura de obras de autores negros que começam a ser editados no país.  Apesar do ligeiro avanço que se nota, o facto de as traduções estarem desligadas das identidades retratadas nessas publicações – observação a que “Rapariga, Mulher, Outra” não é imune –, causa algumas estranhezas de expressão.

 

Falta compreender que dotar os catálogos de representatividade também é isto: perceber que há pertenças com códigos de linguagem próprios, e  reconhecê-las na criação das equipas. Idealmente tão diversas quanto a nossa humanidade.