Carta de repúdio à censura racista em Portugal, exibida numa crítica de arte

Como explicar a dificuldade de aprofundar a discussão racial em Portugal? Podemos começar por assistir aos minutos finais do debate online “Activismo Gráfico — O território da edição como espaço de afirmação de identidade(s)”, realizado no âmbito da Feira Gráfica, que terminou no último domingo, 11. Na conversa, o sociólogo e artista Rodrigo Saturnino, único convidado negro a integrar o painel, questionou a falta de representatividade de uma criação artística, assinada por dois dos outros participantes. O que se seguiu expõe de forma evidente – para quem quiser ver –, como uma proposta de diálogo é automaticamente descartada e percepcionada como uma acusação de racismo. O tema vai estar em análise mais logo n’ “O Lado Negro da Força”, o talk-show online das noites de quinta-feira, que conta com a participação do Afrolink. Para ver a partir das 21h30, em directo no Facebook e no YouTube, hoje com Mariama Injai, criadora do canal AfroMary como convidada. Fiquem ligados!

Rodrigo Saturnino, sociólogo e artista

por Paula Cardoso

AVISO: As falas que se seguem reproduzem séculos de violência racial contra vozes e corpos negros, e, qualquer semelhança com um debate, é pura coincidência.

Esta é uma das advertências que ocorre fazer após o visionamento do debate online “Activismo Gráfico — O território da edição como espaço de afirmação de identidade(s)”.

Nos minutos finais da discussão, realizada no âmbito da Feira Gráfica, que terminou no último domingo, 11, o sociólogo e artista Rodrigo Saturnino, o único orador negro a compor o painel, questionou a ausência de representatividade numa das obras de dois dos outros convidados.

Em causa está uma fotografia da dupla de artistas João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, que recria uma cena do filme “Não É o Homossexual Que É Perverso, Mas a Situação Em Que Ele Vive” (1971), de Rosa von Praunheim.

Na imagem, que integra a exposição ‘Race d’Ep!’, patente na Stolen Books, em Lisboa, vemos 15 homens, todos brancos e magros, homogeneidade que, desde a abertura da mostra, a 23 de Setembro, tem sido questionada.

Isso mesmo foi transmitido por Rodrigo Saturnino a João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira durante a discussão na Feira Gráfica, onde também participaram Cecil Silveira, André Teodósio, Sílvia Prudêncio, Xavier Almeida, sob moderação de Filipa Valadares.

“Racista”, a palavra que silencia

Embora a questão levantada por Rodrigo estivesse perfeitamente enquadrada no tema em discussão –  relembrando: “Activismo Gráfico — O território da edição como espaço de afirmação de identidade(s)” –, a partir do momento em que um dos intervenientes usou a palavra “racistas”, a “máquina silenciadora” entrou em acção.

“Vamos ter de fechar…”, apressou-se a dizer a moderadora, depois de João Pedro Vale evidenciar, na resposta a Rodrigo Saturnino, que entendeu a proposta de diálogo como uma acusação.

“Aquela fotografia não diz em momento nenhum que nós somos racistas ou que não somos inclusivos”, disse João Pedro Vale, escudando-se num argumento tão recorrente quanto esgotado.

“Convidámos muitas pessoas (…) se calhar eram muito mais diversas, [com] corpos muito menos normativos do que os que apareceram no final”, adiantou, sem esconder o desconforto.

“Fico nervoso (…) não tem a ver com a questão, mas com o facto de sentir que nos estão a exigir uma representatividade no nosso trabalho, esquecendo que trabalhamos há 20 anos, e o que o nosso trabalho significa, o que temos vindo a fazer (…) Defendemos a diversidade, somos livres de fazer um trabalho que represente o nosso imaginário”.

Como se não bastasse a resistência de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira ao exercício crítico lançado por Rodrigo Saturnino, a própria moderadora, Filipa Valadares, e os oradores André Teodósio e Sílvia Prudêncio reforçaram a impossibilidade de uma discussão.

Ainda que com diferentes argumentações, André Teodósio e Sílvia Prudêncio coincidiram na ideia de que a prática artística deve ser livre, pressuposto que, defenderam, fica comprometido se começarmos a exigir que as obras dos artistas devem obedecer ao preceito X ou Y.

Lugar de fala para uns, lugar de cala para outros?

E, se dúvidas restassem sobre o achaque de fragilidade branca presente no debate, elas ficaram bem resolvidas com uma frase proferida pela pessoa que, no papel de moderadora, deveria criar – e não queimar – pontes de entendimento.

“Não é a fala de toda a gente falar de tudo”, disse Filipa Valadares.

Pelo contário, nós defendemos que TODA A GENTE tem o direito de falar de tudo, ainda que seja preciso reconhecer que nem todos falamos do mesmo lugar.

E aqui reside o grande problema: há quem continue a achar que a uns é devido um lugar de fala, e a outros um lugar de cala.

De outra forma, como entender que a organização do evento tenha editado o vídeo, de forma a deixar Rodrigo Saturnino a falar sozinho?

Os motivos por detrás dessa censura, conforme sublinhado numa carta de repúdio entretanto divulgada, não são inequívocos, porém, a avaliar pelo conteúdo do debate, há uma linha vincada a separar o plausível do inverosímil.

Rodrigo Saturnino garante que a Feira Gráfica o contactou para comunicar que André Teodósio, João Pedro Vale e Nuno Alexandre “solicitaram à organização que retirassem do vídeo as suas imagens e falas por terem considerado as intervenções ofensivas, tendo em conta o vasto trabalho artístico que realizam em defesa da comunidade gay. O pedido também foi feito por alegarem que não houve consentimento para divulgação das imagens através das gravações online do evento”.

Já depois destas afirmações, transcritas da carta de repúdio, André Teodósio veio assegurar que em momento algum quis deslegitimar a intervenção de Rodrigo Saturnino, assegurando que pediu para que a sua presença fosse apagada de todo o vídeo, não pela discussão gerada, mas por não ter autorizado que a sua imagem fosse imortalizada naquele registo no YouTube.

Um filme de opressão que dura há séculos

A polémica levou a Feira Gráfica a repor o vídeo original – até porque o mesmo continuou a ser divulgado num outro vídeo em que se contrapõem as imagens originais com as editadas –, mas já todos vimos este filme.

“O vídeo original foi republicado, como se tudo estivesse bem. Ninguém foi notificado. Nenhuma explicação por estes actos”, assinala-se na carta de repúdio, encerrada com uma reivindicação.

“Exigimos que seja feita uma explicação pública à falta de respeito com o Rodrigo Saturnino e à dignidade das pessoas negras e racializadas que vivem no território nacional, e que aprenderam a assumir as suas raízes mesmo ao revés social da exclusão e marginalização impostas há séculos em Portugal”.

A controvérsia prossegue a partir das 21h30, n’ “O Lado Negro da Força”, o talk-show online das noites de quinta-feira, que conta com a participação do Afrolink. Para ver em directo no Facebook e no YouTube, hoje com Mariama Injai, criadora do projecto AfroMary, como convidada. Fiquem ligados!