Dia para recordar Alcindo Monteiro, num Portugal sem memória

Tinha 15 anos, quase 16, quando a notícia do bárbaro assassinato de Alcindo Monteiro, a 10 de Junho de 1995, abalroou a minha adolescência. Registei isso mesmo num diário que escrevia na altura, e que – ao contrário de tantos outros – resistiu à fúria de destruições emocionalmente orientadas. Regresso às minhas palavras adolescentes 26 anos depois, juntando-me ao post-homenagem publicado pelo O Lado Negro da Força, a caminho de mais uma emissão. Para ver a partir das 21h.

por Paula Cardoso

Antes de 10 de Junho de 1995 o Bairro Alto não fazia parte da minha geografia. Vivia em Vialonga, estudava em Alverca, a Lisboa que conhecia bem estava circunscrita ao Estádio da Luz, ao Rossio e ao cinema nas Amoreiras, e não tinha grande interesse em saídas nocturnas. Aliás, o mais próximo que estava dessa agitação passava pelas matinés, que por si só já exigiam generosas doses de negociação parental.

A partir desse 10 de Junho, gravado pela notícia do bárbaro assassinato de Alcindo Monteiro, o Bairro Alto passou não só a povoar os meus pesadelos, como a hiperpreparar quaisquer planos de diversão, por mais diurnos que fossem. Sentia-me insegura, desprotegida, e condenada a uma existência marcada pela hipervigilância.

Lembro-me, por exemplo, de verificar com a minha irmã Marlene os “alertas de segurança” a ter em conta, que incluíam escrutinar, além das incontornáveis cabeças rapadas, os looks de combate, onde as botas com biqueira de aço eram uma das armas distintivas.

Creio que para me tranquilizar, por perceber como tudo aquilo me afectava, a minha irmã disse: “Eles têm um código que os leva a não atacar mulheres”. Sentia que a explicação não fazia sentido, mas queria muito acreditar na teoria.

Desconsegui! Recordo-me que cerca de dois anos depois, ainda virgem de Bairro Alto, o medo quase me demoveu de ir conhecer um dos seus bares da moda, popularizado pelos ritmos soul e hip-hop.

Acabei por ir, talvez até me tenha divertido, mas o que conservo na memória é a enorme sensação de insegurança que senti, vertida num mesmo pensamento: “Podem apanhar-nos ao virar da esquina”.

Muitos anos mais tarde, já adulta de coragens feitas e refeitas, o Bairro Alto tornou-se um ponto de paragem obrigatório de quase todas as minhas saídas nocturnas, sem nunca deixar de significar um destino de morte.

Notas de um crime

Estas foram as notas que o 10 de Junho de 1995 deixou no meu diário, naturalmente despidas de rigor noticioso:

“Um repugnante acontecimento marcou este fim-de-semana, para ser mais precisa marcou a madrugada de 10 de Junho no Bairro Alto.

Um grupo de 50 jovens denominados skinheads invadiram as ruas do já citado bairro com o intuito de agredir todas as pessoas que foram encontrando, desde que tivessem o tom de pele diferente do deles.

Uma atitude que teve, como não podia deixar de ser, as suas consequências: uns tantos feridos ligeiros e um morto.

Um cabo-verdiano morreu, com apenas 27 anos, vítima de atitudes claramente racistas. Eu pensava que estes grupos racistas haviam dispersado, mas deparo-me com uma realidade bem diferente. A mim quer-me parecer que o facto de um ser humano não ser detentor dos requisitos que os tais grupos apreciam torna-o a próxima vítima, o que é lamentável.

Nós estamos quase no século XXI e ainda temos de assistir a este tipo de “espectáculos”. Ainda por cima a polícia, que fica a cerca de 200 metros do local, começou a intervir apenas quase duas horas depois de terem começado os incidentes. Resultado: apenas 9 skinheads foram capturados. Isto é revoltante!!

Estão todos presos preventivamente e só espero que sejam condenados por homicídio”.

Vinte e seis anos depois, sabemos que o crime sentou 17 arguidos no banco dos réus, julgados por homicídio e ofensas corporais, mas aliviados da acusação de genocídio, abandonada pelo Ministério Público.

Onze dos acusados foram punidos com penas entre 16 anos e meio e 18 anos de cadeia, enquanto os outros cumpriram penas entre três anos e meio e quatro anos e nove meses de prisão. Na leitura da sentença, o racismo, o nacionalismo, o fascismo e o nazismo dos homicidas ficou cabalmente demonstrado.

Mas a história que se assinala a 10 de Junho continua amnésica de tudo isso. Nós, no Afrolink e n’ O Lado Negro da Força, não esquecemos!

Pela nossa memória estaremos juntos esta noite, para mais emissão do nosso lugar de fala. Hoje com o líder comunitário Bruno Wah como convidado.

Para ver no Facebook e no YouTube, a partir das 21h.